A revista The Economist, que gosta de ser chamada de jornal e que este leitor considera o melhor semanário do mundo, tem, conforme o clichê, ‘impecáveis credenciais’ liberais.
São impecáveis por sua lógica interna e por ser muito difícil achar algum texto dela que não seja coerente com o liberalismo clássico a que é fiel desde a sua criação, em 1843.
O liberalismo da Economist manda pôr o indivíduo em primeiro lugar e o Estado, em último. As pessoas devem gozar da mais ampla liberdade porque, tudo somado e subtraído, elas sabem o que é melhor para si – e isso é também o melhor para a sociedade.
Para a revista, as pessoas devem ter o direito de fumar, beber, se drogar – e, principalmente, de empreender e de competir umas com as outras em mercados com o mínimo possível de regulação.
Em todos os campos – dos bens e serviços materiais, à informação, arte e cultura – a competição entre indivíduos livres é a principal porta para o progresso coletivo.
‘Mercado persa’
Parece importante deixar fortemente sublinhado o que é o liberalismo da Economist e assinalar como isso permeia de ponta a ponta cada uma de suas edições, para dar sentido ao entusiástico entusiasmo da revista – o pleonasmo é intencional – ao tratar da nova mídia, principalmente do bloguismo, no caderno especial que acaba de publicar a respeito [edição datada de 22-28 de abril].
No survey, como a revista designa esses periódicos especiais – no caso, um conjunto de oito matérias, mais cinco entrevistas que podem ser ouvidas na internet, precedidas pelo editorial ‘Falando consigo mesmo’ –, o autor Andreas Kluth sustenta uma idéia que não é nova e a leva mais longe do que outros, menos ousados.
Essencialmente, como se lê no subtítulo da matéria de abertura, é a idéia de que ‘a era da mídia de massa está cedendo lugar a uma era de mídia pessoal e participativa [que] modificará profundamente tanto a indústria da mídia como a sociedade inteira’.
É isso é bom demais, acredita a revista.
O otimismo começa no subtítulo do editorial: ‘Não tenha muito medo da era de participação em massa que vem aí’.
E viceja nos finalmentes, quando critica os céticos. O texto considera ‘delirantemente pessimista’ o temor de que ‘a cacofonia [da blogosfera] conduza a uma sociedade fragmentada’. Esse receio é traduzido, de forma exageradamente simplista, em duas perguntas:
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‘Como é que algo de bom pode resultar do clamor de tantas vozes alçadas?’**
‘Não será [a blogosfera] uma câmara de eco onde todos aqueles transbordando de apaixonada intensidade passam longas horas compartilhando preconceitos?’[Comentário colateral indispensável: pode-se discordar de tudo que sai na Economist, mas como esse pessoal escreve bem!]
A revista não nega a facilidade com que a internet propaga besteiras, mentiras e difamações. Mas isso é superado, afirma, pela facilidade com que ela propaga percepções originais e idéias.
Em tese, sem dúvida. Na vida real, difícil dizer. Difícil decerto para sustentar tamanha convicção. Muito menos para assinar embaixo da comparação que fecha o comentário:
‘Lamentar a gloriosa fecundidade da nova mídia é preferir o murmúrio reverente da catedral à barulheira do mercado persa.’
Só que o ponto não é esse, como se verá.
Jornalismo-cidadão
O survey usa e abusa da palavra mais querida e repetida na blogosfera – conversação.
Um entre dezenas de exemplos são as aspas com que entra no especial o blogueiro David Weinberger, do Centro Beckman da Universidade Harvard. Diz ele: a mídia convencional ‘não percebe quanto é subversivo transformar instituições em conversações’. A instituição, no caso, é a própria e amaldiçoada msm – a mainstream media de que falam americanos e britânicos.
A msm de Weinberg é pouco mais do que uma caricatura – uma instituição fechada, hierárquica e que tem problemas em admitir que é falível. Já a blogsfera é o Éden da comunicação: nela, as conversações são abertas, baseadas na igualdade e ansiosas em reconhecer a sua falibilidade.
É maniqueísmo para ninguém pôr defeito.
Típico também do survey é dar a palavra aos desconfiados, apenas para reduzi-los a pó no parágrafo seguinte. Assim, Barry Diller ‘que cabe na definição de magnata da mídia’ e tem 64 anos – sintomaticamente, a única fonte cuja idade é citada – entra na reportagem acreditando que o jornalismo participativo jamais será uma base adequada para a indústria da mídia. ‘Textos publicados por talentos medianos não são muito interessantes’, raciocina. ‘Talento é o novo recurso limitado.’
‘Que ignorantão’, rebate o consultor de mídia Jerry Michalski. ‘Ele está completamente errado.’ A fonte admite que ‘nem tudo’ na blogosfera é poesia, sinfonia, filme para participar de festivais. E nem todas as entradas na Wikipedia, a enciclopédia aberta da internet, são 100% corretas. ‘Mas o mesmo pode ser dito da imprensa, rádio, TV e da Enciclopédia Britânica.’
Assim é fácil. Ou melhor, fica difícil.
A crença inabalável da Economist no indivíduo emerge, por exemplo, quando o caderno se rejubila com o que considera o grande fato novo da nova mídia: ‘Os jovens, hoje, e a maioria das pessoas no futuro, decidirão alegremente por si sós o que é crível e valioso [na blogosfera] e o que não é.’
Contribuindo para a apologia da ‘gloriosa fecunidade’ da nova mídia, entra repetidas vezes em cena um dos diretores do Instituto do Futuro, da Califórnia, Paul Saffo.
Ele prevê que a revolução midiática proporcionada pelas novas tecnologias de comunicação produzirá nada mais, nada menos, do que ‘uma explosão cambriana’ de criatividade. O que a revista explica liricamente com as seguintes palavras: ‘Um florescimento de diversidade expressiva na escala da epônima proliferação de espécies biológicas de 530 milhões de anos atrás.’
E dá-lhe hipérbole. O editor [ex-Economist] da revista Wired, Chris Anderson, proclama: ‘Estamos adentrando uma era de riqueza cultural e escolha abundante nunca antes vista na história. A produção entre iguais é a mais poderosa força industrial do nosso tempo.’
A matéria de abertura do survey se salva pelo gongo ao registrar, no fecho, que ‘muita gente na mídia tradicional é pessimista em relação ao surgimento de uma cultura participativa (…) por sentir que ela ameaça o discurso público, a civilidade, mesmo a democracia’.
Tire um pouco, acrescente um pouco, é por aí, acredita este leitor, carregando a mão no pessimismo para contrabalançar a babação de ovo da Economist, com perdão pelo termo, e por motivos que aparecerão adiante.
Na reportagem que trata especificamente do bloguismo, a revista destaca, nesse caso com absoluta razão, o caráter democrático desse tipo de interação, embora não seria excessivo acrescentar-lhe a ressalva ‘em princípio’. Mas peca de novo pelo simplismo ao citar, como quem endossa, o blogueiro Sabeer Bhatia, que diz jornalismo é sermão, blog é – adivinhem – conversação.
O caderno dá merecido espaço à antológica experiência do blog que virou jornal eletrônico com características blogueiras – e hoje tem uma versão impressa! Trata-se do Ohmy News da Coréia – e, infelizmente, em coreano.
Citado em todos os estudos sobre a nova mídia, o Ohmy News é creditado pela eleição do atual presidente do país, Roh Moo Hyun, cuja primeira entrevista depois de eleito foi para o mesmo blog/site [que assim se chama porque o nome do seu criador começa com Oh: Oh Yeon Ho.
É uma história do sucesso da nova mídia em galvanizar um público suficientemente amplo a ponto de interferir no resultado de uma eleição nacional. Felizmente, a matéria alerta que é ‘a única’ história do gênero, como observa o jornalista americano Dan Gillmor, cujo livro We the media já se tornou um clássico nesse departamento [veja aqui em inglês e aqui, em espanhol].
Gillmor, um ardente defensor do bloguismo, tentou criar um modelo de jornalismo-cidadão no site Grassroots Media. Depois de um ano, desistiu, porque não conseguiu achar um modelo de negócios suficientemente bom.
A matéria tem também o mérito de fazer outro alerta: o de que a área onde o jornalismo-cidadão está indo muito bem, obrigado, é a menos glamorosa: lida com a chamada ‘cobertura hiperlocal’, cobrindo assuntos que não são tratados nem pela imprensa escrita municipal.
‘Jardim murado’
Uma parte relevante do caderno é a que aborda o confronto entre a mídia velha e a mídia nova. Traz aquelas estatísticas todas sobre a crise da imprensa americana – embora para cada dólar de publicidade por leitor de jornal impresso, as edições online recebam apenas 20 centavos, se tanto.
E cita a conhecida aberração da indústria da mídia nos Estados Unidos: o lucro médio dos 12 maiores jornais do país em 2004 foi de 21% – mais que o dobro da média das empresas listadas entre as 500 maiores pela revista Fortune.
É uma aberração porque Wall Street não se contenta com menos. Para satisfazer a ganância dos acionistas, que encaram a imprensa como um negócio como outro qualquer, os executivos cortam custos a mais não poder nas redações. O que obviamente afeta a qualidade dos jornais como fonte de informação, logo, a sua credibilidade, logo, a sua circulação.
Para se ter uma idéia, a Economist informa, citando o estudo anual ‘The state of the news media‘, que o total de repórteres que cobrem a região metropolitana de Filadélfia [220] caiu pela metade desde 1980.
Por isso, merecia mais do que as poucas linhas que recebeu a conclusão desse estudo, segundo o qual o que preocupa não é o admirável acréscimo representado pela mídia-cidadã, ‘mas o declínio do monitoramento profissional e em tempo integral de instituições poderosas‘ [destaque deste leitor]. Como diz a própria revista, ‘é para isso que deve servir a imprensa livre nas democracias’.
E daí? Daí, resume o survey na sua melhor matéria, ‘Que tipo de revolução?’, os melhores analistas da blogosfera tendem a escorregar para excessos de otimismo ou pessimismo.
O empresário Michael Moritz, o primeiro a sacar a importância do Yahoo! e do Google, é citado como tendo dito que se existissem blogs na Alemanha em 1931, ‘os nazistas teriam chegado ao poder mais depressa’.
Vejam que coincidência. Num seminário sobre a nova mídia em São Paulo, na véspera de entrar na internet a edição online da Economist com o caderno especial sobre o assunto, ao ouvir que o bloguismo é o grande antídoto à apatia cívica das novas gerações, o jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva perguntou o que é melhor: ‘A apatia ou a Juventude Hitlerista?’
Até o futurólogo Paul Saffo, aquele da ‘explosão cambriana’ de criatividade na blogosfera, adverte:
‘Cada um de nós pode criar o nosso próprio jardim murado de mídia pessoal, que nos circundará com informações confortadoras e confirmadoras, deixando de fora, completamente, tudo que conflitar com a nossa visão de mundo. Isso é dinamite social [cujo resultado poderá ser] a erosão do espaço público intelectual que mantém a sociedade junta. Nos arriscamos a nos aconchegar em tribos definidas por preconceitos compartilhados.’
Defesa da civilidade
A conclusão a que chega o survey tem um lado bom, outro nem tanto.
O lado bom – e surpreendente, dado tudo que o antecede – é a admissão de que ninguém sabe, a rigor, se a era da mídia participativa será para o bem ou para o mal.
O lado nem tanto – pelo simplismo, ainda uma vez – é o enunciado de que as pessoas com fé na democracia geralmente dão as boas-vindas à mídia participativa, enquanto as pessoas que têm reservas em relação ao sistema democrático sentirão saudade das certezas impostas de cima para baixo pela mídia de massa.
O raciocínio rombudo contraria o próprio argumento de Saffo, que faz ressalvas ao bloguismo justamente em nome da democracia – e não do seu oposto.
O que leva este leitor, enfim, aos motivos que o fizeram confessadamente carregar a mão no pessimismo neste texto.
Eles derivam da seguinte pergunta:
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O bloguismo que de uma forma ou de outra lida com a dimensão pública das nossas atividades tende a promover ou a tolher a expansão de uma cultura cívica de participação democrática?O blogueiro Dan Gillmor, do We the media, acha claramente que sim. Em primeiro lugar e acima de tudo pela interatividade, que é o traço que distingue as novas mídias.
Pode-se objetar, porém, que a instantaneidade e a socialização – a oportunidade de ser ‘ouvido’ por muitos em tempo real ou quase isso – que estão no cerne dessa interatividade incentivam o narcisismo dos interlocutores. O que, por sua vez, é a antítese das condições e do estado de espírito necessários a formas mais matizadas de pensamento.
Freqüentemente, a conversação na blogosfera periga se resumir numa pergunta e numa ordem. A pergunta: ‘Você é contra ou a favor de tal coisa?’ A ordem: ‘Vamos lá, diga logo’.
Quando isso acontece – como bem sabem os blogueiros do Observatório da Imprensa, entre eles este leitor – a conversação sobre questões de interesse público, a exemplo da interação entre mídia e política, corre o risco de se degradar numa ágora onde a regra é o grito e a exceção é o respeito às diferenças.
É o que a Economist chamaria, elogiando, de ‘barulheira de mercado persa’. Para citar Gillmor ainda uma vez, no We the media ele entrevista outro defensor do jornalismo participativo para quem ‘metade’ do que circulava no blog que ele mantinha era nonsense.
Há também o problema do nível de informação dos habitantes da blogosfera. Quanto mais numerosos, menos bem informados, parece ser o padrão. O que facilita o trânsito de deturpações dos acontecimentos e de opiniões baseadas em falsidades.
Sem salvaguardas em defesa da integridade dos fatos e da civilidade dos comentários que eles provocam, não há hipótese de a blogosfera promover a cidadania. Ainda Gillmor: ‘Sempre precisaremos de editores’.
Como na vilipendiada mídia convencional.
[Texto fechado às 18h10 de 21/4]
P.S. — Um exemplo, ao acaso, para corroborar o ceticismo quanto aos poderes da blogosfera como promotora da democracia, pela ampliação do debate civilizado sobre questões de interesse público.
É o mais recente comentário, postado na madrugada deste 25 de abril, ao artigo do colunista George Monbiot, na edição eletrônica do Guardian de Londres. No artigo, Monbiot explica por que se converteu em defensor do uso doméstico em larga de escala de combustíveis fósseis – gás natural, no caso.
O comentário, enviado por um leitor que se assina alFarabi, diz o seguinte: ‘Monbiot prova mais uma vez que é um burguês vendido. Ele apoiará qualquer megaindústria que gaste um pouco em relações públicas para fazer crer que é favorável à defesa do ambiente’.
[P.S. acrecentado às 8h30 de 25/4]