Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que falta ao debate sobre TV digital

O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), legislação que rege o rádio e a televisão no Brasil, data de 1962, quando a própria televisão em preto e branco ainda era uma novidade para boa parte da população brasileira.


A TV a cabo tem uma lei própria, e as demais modalidades de televisão por assinatura – o MMDS (microondas) e o DTH (televisão por satélite) – não tiveram sua regulamentação por meio de discussão pública, com aprovação de lei ordinária no Congresso Nacional. Foram reguladas por portarias e têm critérios diversos da TV a cabo em diferentes questões, entre elas a participação de capital estrangeiro nas empresas de TV por assinatura.


Por outro lado, os chamados serviços de telecomunicações estão submetidos à Lei Geral de Telecomunicações e à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), desde a distinção criada entre comunicação e telecomunicações, produzida pela Emenda Constitucional nº 5, de 1995. Até então eram regidos pelo mesmo código de 1962.


Esses movimentos contraditórios e casuístas vêm tornando a nossa legislação uma verdadeira colcha de retalhos, incapaz, também, de balizar as novas atividades que surgem e o entrelaçamento de diferentes serviços, frutos do advento da tecnologia digital e da chamada convergência tecnológica.


Os debates em torno da TV digital trazem à tona novamente a necessidade de reformular a legislação criando um novo marco regulatório – unificando, a partir de princípios comuns, a contraditória legislação brasileira no campo da comunicação.


Para discutir a necessidade de criação de uma nova legislação para o setor de comunicação, o Boletim Prometheus entrevistou o professor Murilo César Ramos, coordenador do Laboratório de Políticas em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).


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Qual a importância dessas redefinições no momento atual e que riscos corremos caso elas não aconteçam?


Murilo César Ramos – Os debates da TV digital, na realidade, esconderam durante quase todo o atual governo o debate que o deveria preceder, sobre um novo ambiente normativo – político, regulamentar e regulatório – para a comunicação social eletrônica brasileira. Só quando aquelas forças não-empresariais, comumente conhecidas como da ‘sociedade civil’ – destaco duas, hoje as mais importantes: o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e o Coletivo Intervozes – deram-se conta de que o projeto – essencialmente técnico, ressalto – do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) seria desconsiderado pelo governo, é que elas retomaram a tese fundamental do novo marco normativo. O que temo é que talvez tenha sido tarde demais, e que a decisão técnica, qualquer que seja, aconteça ainda este ano, tornando ainda mais fragmentada e dispersa, e casuística, a atual legislação para a comunicação social eletrônica.


Que princípios devem nortear uma Lei Geral das Comunicações?


M.C.R. – Prefiro, por ora, circunscrever essa lei ao que denomino Comunicação Social Eletrônica, que compreende essencialmente o rádio, a televisão e as mídias digitais correlatas que têm na internet o seu meio-síntese. Para mim, são três os princípios fundamentais que deveriam nortear essa lei. O primeiro é reconhecer a centralidade da idéia de público para a estruturação de qualquer sistema de comunicação democrático. Isso significa em nosso caso duas estratégias básicas de política de comunicação. Uma é garantir que em nosso sistema comercial possa existir um subsistema público de rádio e televisão de alta qualidade programática e técnica, e com fontes de financiamento próprias e asseguradas. Penso em algo como o Public Broadcasting Service (PBS) e National Public Radio (NPR), existentes nos Estados Unidos. Este é um subsistema que pode e deve nascer das estruturas de uma Radiobrás e de uma televisão educativa ‘desgovernamentalizadas’ e transformadas em entes de Estado sob amplo controle público.


A outra estratégia é fazer com que toda concessão ou permissão dada para a exploração de um serviço de comunicação social eletrônica seja de fato outorga de serviço público, e não, como hoje, licenças frouxas, que tornam o uso das radiofreqüências (ao contrário, inclusive, do que ocorre com as telecomunicações) uma atividade quase que eminentemente privada. O público, na comunicação social eletrônica que utiliza um bem coletivo escasso, como é o caso do rádio e da televisão, tem que se sobrepor ao privado. E mesmo os serviços de comunicação social eletrônica que sejam objeto de outorgas de autorização deveriam estar submetidos a contratos com claras obrigações de prestação do serviço nos termos estabelecidos pela Constituição federal.


Um segundo princípio é o da regulação autônoma. O segmento da comunicação social eletrônica conhecido como radiodifusão, ou rádio e televisão abertos – prestes a passar por uma transição tecnológica digital que mudará substantivamente sua estrutura de programação e relação com a sociedade – é hoje o mais irregulado da economia brasileira. Sua lei básica, a Lei 4.117, é de 1962 e já está toda desfigurada. Seu órgão regulador é o Ministério das Comunicações, que, na maioria das vezes, serve de escritório em Brasília para atender os interesses do empresariado, e não os do Estado e da sociedade. Não é mais possível pensar a comunicação social eletrônica sem um aparato de regulação autônomo e eficaz amplamente permeado pela sociedade.


Um terceiro princípio é o do aproveitamento da transição tecnológica digital para aumentar a diversidade dos atores – estatais, públicos e privados – capazes de prover a sociedade com as mais variadas programações informativas, culturais e de entretenimento. O mercado de comunicação social não pode ser reservado para o oligopólio, quase monopólio, que hoje o domina, e que deseja manter essa dominação sob um farisaico discurso nacionalista e protecionista. É por isso que um novo ambiente normativo – com suas políticas, leis, regulamentos e entes reguladores – precisa preceder a transição tecnológica digital. Por meio dele podemos introduzir, acredito, novos atores na produção, empacotamento e distribuição de programações audiovisuais, estabelecendo limites ao controle de empresas, horizontal e verticalmente – criando condições para ampliar a produção audiovisual nacional.


O que não podemos é perder esse momento da chamada convergência digital para manter um paradigma ultrapassado, em particular no mercado da televisão aberta. Nesse mercado, quem se quer fazer hoje de Davi é também Golias. Todos, aliás, empresas de televisão e de telecomunicações, são Golias. Os Davis estão na sociedade receptora, quase sempre passiva do que lhe é vendido. O importante é que o interesse público, pela via do Estado, se imponha sobre os interesses do privado. E isto só se consegue, em um Estado de Direito, pelo recurso da lei.


Os radiodifusores vêm tentando reduzir o debate em torno da TV digital a uma disputa entre eles, representantes do ‘bem’ e da produção nacional, contra o ‘mal’ e a invasão estrangeira, promovida pelas empresas de telecomunicações. Sabemos que essa definição, além de reducionista, é casuísta. Basta citar o envolvimento histórico da Globo com a abertura irrestrita das telecomunicações ao capital estrangeiro e a sua aliança atual com a News Corporation e a Telmex, que vêm escancarando as redes de comunicação via satélite e de TV cabo ao domínio de corporações globais.


M.C.R. – A pergunta contém boa parte da resposta, com a qual concordo na essência e à qual tentei me remeter quando usei, há pouco, a metáfora, espero que adequada, do embate entre David e Golias.


Como uma futura Lei Geral deve definir a participação de capital estrangeiro no mercado brasileiro?


M.C.R. – Apesar do modo atropelado como aconteceu a mudança do artigo 222 da Constituição, que permitiu a entrada de pessoas jurídicas, inclusive estrangeiras (estas com no máximo 30% do capital votante das empresas jornalísticas e de rádio e televisão abertos), creio que esse é um patamar razoável a partir do qual se pode fazer a discussão sobre como o capital estrangeiro pode contribuir para a diversidade na comunicação social eletrônica brasileira. País algum do mundo, mesmo na Europa unificada, descuida da sua língua e da sua cultura quando se trata de regulamentar e regular imprensa, cinema, rádio e televisão por qualquer meio de transmissão. Os mecanismos variam, mas restrições existem. Essa tem que ser também nossa atitude.


Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a formulação de uma Lei Geral não passou de anteprojeto e ameaças. Estamos na reta final do governo Lula e como saldo nessa matéria tivemos poucos avanços e muitos recuos, além de ministros que passaram pela pasta das Comunicações sem grande interesse pelo assunto. Acredita que o governo apresente nessa reta final alguma proposta de Lei Geral?


M.C.R. – Não, não acredito. E lamento profundamente.

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Integrante do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (www.indecs.org.br)