Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mais uma vítima

Bastou passar no Fantástico. A voz aveludada de Cid Moreira narrou a entrevista da moça loira, ex-estudante de Direito, vestida como criança, que chorava um choro sem lágrimas e cujas palavras todas estavam combinadas com os advogados. Bastou ser exibido em rede nacional de televisão e Suzane von Richthofen foi presa, já na segunda-feira à noite. Datena acompanhou todo o processo ao vivo, no seu Brasil Urgente.

Todo mundo sabe do que se trata. Os advogados da jovem que assassinou os próprios pais queriam melhorar a imagem da moça perante a sociedade. Claro, o crime será julgado em júri popular daqui algumas semanas e, afinal, eles tinham de arrumar um jeito de abrandar o ódio e a sede de sangue que a opinião pública sente por sua cliente.

Neste caso, no entanto, nesta entrevista, Suzane foi vítima. Vítima não do namorado ou do cunhado, co-autores do assassinato, mas da mídia. A maioria das pessoas deve estar achando maravilhoso o que a Globo fez – ela pegou aos advogados de Suzane e a própria Suzane no pulo, tentando passar a todos para trás, os ‘cidadãos de bem’, a polícia, os promotores do caso, o juiz, a Justiça, o Brasil. Prestaram mais um grande serviço à nação.

Balela. O que a Globo fez no domingo foi botar mais um ingrediente na sopa nojenta de moralismo em que o país, os políticos e principalmente os meios de comunicação estão mergulhando. Não é da competência da Globo julgar cidadãos, muito menos escrutinar a vida de pessoas não-públicas, como eu ou você, jogá-las na cadeia ou promover seu linchamento. Quem julga é o Poder Judiciário. Só ele tem a competência para incriminar e absolver cidadãos dos crimes dos quais são suspeitos.

Suzane não é suspeita de nada. É ré confessa. Disse com todas as letras ter participado do assassinato do pai e da mãe enquanto eles dormiam em sua mansão. Se foi covarde, sangue frio, desmiolada amoral, não cabe a ninguém que não aos tribunais dizer. Cid Moreira nada tem a ver com isso, nenhum de nós tem nada a ver com isso. O que importa saber que Suzane vive rodeada de periquitos, veste-se como criança, chora sem derramar lágrimas?

Advogados, todos eles orientam os clientes senão a mentir a se comportarem da maneira mais adequada no sentido de amenizar suas penas. Se é certo ou errado, importa que é um fato. E seria ótimo se a reportagem tivesse flagrado esse tipo de conversação entre advogado e cliente com uma câmera justa, sabidamente aberta, e não com esse jogo sujo de esconde-esconde que os repórteres da família Marinho vivem jogando em nome de ‘causas maiores’.

A Globo pôs uma pessoa na cadeia. Suzane devia estar na cadeia? A lei brasileira – e não a grana da moça – permitiu sua saída da prisão. Mas em vez de a emissora fazer pressão legítima para uma mudança que evitasse esse tipo de brecha na lei, não, ela vai lá e faz justiça com as próprias câmeras. Se a lei não consegue colocar essa assassina atrás das grades, a gente põe.

Um desperdício

Desempenha, dessa maneira, um papel que não lhe cabe e que jamais lhe deveria ser permitido desempenhar. Porque é sintomático e perigoso. O jornalismo é o terreno do interesse público. E o jeito como vive Suzane von Richthofen não diz respeito à sociedade. O que ela fez já foi exibido à exaustão. Ganhou os holofotes por ser inusitado e por ter acontecido numa família podre de rica. A mídia pode acompanhar os passos do julgamento, já que foi um ‘crime que horrorizou o Brasil’, e só. Não deve fazer o papel dos investigadores, do júri, do promotor, do juiz.

A OAB criticou os advogados da moça pelo comportamento, mas ninguém criticou os repórteres, editores e apresentadores do Fantástico responsáveis pela entrevista. Será que é tão difícil ver que existe um nítido abuso de poder midiático, um claro desvio de funções da emissora?

A Globo tem pessoal espalhado em cada rincão do Brasil, de Botucatu ao fundão de Tocantins, só ela tem condições de mostrar o Brasil de verdade aos brasileiros de verdade. Mas deixa de investigar mais a política e os políticos, de agir na construção de uma consciência efetiva do povo brasileiro, de levantar debates relevantes para o fim da pobreza, enfim, deixa de fazer um jornalismo comprometido com o interesse público para ficar alimentando um interesse mórbido do público que renuncia ao pensamento crítico para babar na frente da tevê, assistindo a tragédias particulares socialmente irrelevantes.

O jornalismo de um país reflete a sociedade deste país. Uma sociedade fútil, consumista, egoísta e voyeur só pode produzir e absorver um jornalismo que entretém em vez de informar, que se volta para a vida privada, que elege bandidos e mocinhos e se baseia no sensacionalismo para ganhar ibope, anunciantes e dinheiro. Um desperdício.

******

Estudante de Jornalismo