‘Até agora havia relutado em escrever sobre as manifestações enviadas ao ombudsman por leitores-torcedores de times de futebol. A maioria dessas mensagens vem carregada de argumentos beirando a irracionalidade; com esses leitores, logo notei, seria extremamente difícil diálogo minimamente razoável. (Recebi também manifestações bastante interessantes, apontando algumas incongruências na cobertura de esportes, mas foram exceções). Depois do assassinato no Rio de dois líderes de torcidas organizadas, um do Botafogo e outro do Fortaleza, em briga entre os grupos após o jogo, resolvi escrever sobre o assunto.
Para se ter noção do tipo de argumento que já ouvi, conto um caso acontecido logo após a morte do vice-presidente do O Povo, José Raymundo Costa, torcedor declarado do Fortaleza. Ouvi de mais de um leitor: ‘Foi só o seu Costa morrer para O Povo passar a torcer pelo Ceará’. Outros acusam o jornal de esmerar-se em publicar as notícias do tricolor em páginas em preto e branco, como suposta forma de subtrair-lhe o direito de ter suas cores reproduzidas. Dos torcedores do rival, as críticas são parecidas, em sentido inverso: que o jornal ‘torce Fortaleza’ e de só publicar notícias do Ceará ‘quando é para falar mal do time’. Muitas mensagens são agressivas e, invariavelmente, vêm acompanhadas de ameaças de suspender a assinatura ou promover boicote à leitura do jornal.
Não é tarefa fácil, mas é preciso entender o porquê dessa violência (simbólica e real), que levou a diversão mais popular do Brasil a se transformar, literalmente, em uma guerra, com todas as atrocidades daí decorrentes. Matar e morrer às saídas dos estádios tornou-se banal, a ponto de um policial do Rio de Janeiro ter afirmado que os dois assassinatos estavam ‘dentro da média de mortes no confronto de torcedores após as partidas’, como registrou o jornalista Alan Neto, na coluna ‘Confidencial’ (6/12).
O jornalista Nelson Rodrigues Filho, que durante 15 anos assinou uma coluna no Jornal dos Sports (Rio), vê a imprensa como um dos culpados pela situação. ‘Quando a violência começou a aumentar nos estádios, os jornais fecharam os olhos, pois o espetáculo tinha de continuar; atribuía-se os conflitos a ‘meia dúzia de baderneiros’, quando o problema já era grave’ e sistêmico, diz ele. Para o jornalista, não interessava aos ‘patrocinadores’ a revelação da violência, ‘pois o futebol começava a se transformar em um grande negócio’. O jornalista critica também os dirigentes esportivos ‘que usam as torcidas em disputas políticas’. Mas, diz ele, a violência chegou a um ponto que está prejudicando o negócio dos que lucram com o futebol. Para Sérgio Redes, colunista do O Povo e ex-jogador de futebol (Botafogo, Fortaleza, Ceará), as torcidas organizadas ‘escondem muitos interesses, alguns inconfessáveis’, sendo preciso investigá-las.
A cobertura do O Povo é indicativa das impossibilidades a perpassarem o assunto. O jornal vem usando um tom emocional para falar da morte do chefe da torcida do Fortaleza. Registra várias declarações de pessoas lamentando, legitimamente, a morte do torcedor cearense – a manchete de página da edição de quinta-feira foi ‘Indignação no adeus’ -, mas pouco se escreve e nada se lastima do assassinato do outro jovem, morto nas mesmas circunstâncias. Ou seja, há recusa de refletir sobre o assunto, pois o culpado é sempre o ‘outro’. (E nessa briga de torcidas organizadas parece não haver o lado do mocinho.) Se assim continuar, será cada vez mais difícil resolver o problema.
O olhar
Recebi e-mail de uma leitora a respeito da foto publicada na primeira página da edição de quarta-feira, mostrando o cortejo que acompanhou o enterro do monsenhor Murilo de Sá Barreto, em Juazeiro do Norte. Escreveu ela: ‘Gostaria de saber se existe um perfil, no lado esquerdo, no alto da foto. Mostrei para algumas pessoas e todas concordam que aparece um rosto, como se olhasse lá de cima. Será montagem? Ilusão de ótica? Ou Nossa Senhora estava acompanhando a despedida (do monsenhor Murilo)?’ Expliquei à leitora não haver montagem, nem ilusão de ótica, muito menos milagre. A foto, feita pelo repórter-fotográfico Fco Fontenele, mostra a multidão acompanhando a missa campal de corpo presente do religioso.
O ‘perfil’, visto pela leitora, é o recorte do rosto de uma estátua de Nossa Senhora das Dores, que fica na Praça dos Romeiros, onde realizou-se a cerimônia. O fotógrafo enquadrou o rosto da imagem em primeiro plano (desfocando-o um pouco, propositalmente), com a multidão ao fundo. Fontenele diz que o objetivo foi associar o rosto triste da imagem (na sua integralidade, a estátua representa Nossa Senhora tendo nos braços o Cristo morto), com a ‘dor’ das mais de 100 mil pessoas que acompanhavam o enterro do monsenhor Murilo. O fotógrafo afirma não ter havido o propósito de produzir ilusão, sugerindo algo sobrenatural. Para ele, as dimensões reduzidas com que a foto foi publicada ajudaram a provocar a confusão de leitura (olhar).’