Uma das conseqüências não planejadas da prolongada crise política que o país atravessa é a discussão sobre o papel que a mídia desempenha em todo o processo. Apesar (ou por causa?) da resistência histórica que a grande mídia sempre tem demonstrado em pautar a reflexão sobre si mesma (ver ‘Escândalos midiáticos no tempo e no espaço‘, OI nº 376), é crescente o número de entidades da sociedade civil que vêm se dando conta da importância desse debate. E uma das questões inevitáveis a ser enfrentada refere-se ao velho conceito de objetividade jornalística ou de neutralidade da cobertura.
Bill Kovach e Tom Rosenstiel, no prestigiado Os elementos do jornalismo – O que os jornalistas devem saber e o público exigir (Geração Editorial, 2003), fazem uma arqueologia do conceito e afirmam que, na sua origem, por volta da década de 1920, a objetividade…
‘…reclamava que os jornalistas desenvolvessem um método consistente de testar a informação, um enfoque transparente com as provas disponíveis, precisamente para que os preconceitos pessoais ou culturais não prejudicassem a exatidão do trabalho’.
Citam também o pioneiro Walter Lippmann, crítico da cobertura que o New York Times havia oferecido a seus leitores da Revolução Russa de 1917, ao insistir que…
‘…só existe um tipo de unidade possível num mundo diversificado como o nosso. É a unidade do método, não de objetivo; a unidade do experimento disciplinado’. E concluem que ‘no conceito original o método é objetivo, não o jornalista. A chave está na disciplina do ofício, não em sua finalidade’.
Ponto de vista prévio
Apesar dessa origem, o conceito de objetividade tem uma história confusa. Objetividade como método passou a ser também um pressuposto da conduta do jornalista. O credo da imprensa liberal refere-se ao jornalista como devendo ser objetivo, isto é, neutro. As opiniões estariam somente nas colunas assinadas e nos editoriais.
O que se sabe, no entanto, é que a neutralidade pessoal do jornalista é uma impossibilidade concreta e, em relação à objetividade como método, afirmam Kovach e Rosenstiel que…
‘…embora a profissão tenha desenvolvido várias técnicas e convenções para determinar os fatos, pouco tem feito para desenvolver um sistema para testar a confiabilidade da interpretação jornalística’.
Comentando a questão em artigo recente publicado na revista online Slate, com o sugestivo título de ‘O crepúsculo da objetividade’, o articulista norte-americano Michael Kinsley reconhece que o ‘jornalismo de opinião’ é o que está ‘funcionando’ em termos de audiência e, portanto, em termos comerciais, na mídia americana – televisão, rádio, jornais, revistas, blogs e podcasts. Ao mesmo tempo, afirma ele, os…
‘…jornalistas que reivindicam não ter desenvolvido opiniões próprias a respeito daquilo que cobrem estão ou mentindo ou profundamente desinteressados e não-reflexivos acerca do mundo ao redor deles’.
E lembra ainda que…
‘…em campos intelectuais diferentes do jornalismo, a noção de uma realidade objetiva que pode ser descrita por palavras tem estado, por décadas, ainda mais profundamente fora de moda’.
O importante, insiste Kinsley, é que…
‘…abandonar a pretensão de objetividade não significa abandonar a obrigação mais importante do jornalista que é a exatidão factual’.
A proteção de uma pretensa objetividade jornalística, combinada com a ausência da exatidão factual, pode ainda servir de recurso para jornalistas sem honestidade intelectual selecionarem fontes que, na verdade, confirmem um ponto de vista prévio defendido por um grupo de mídia ou pelo próprio jornalista.
Clareza e transparência
No Brasil, a atual crise política recoloca a questão da objetividade na prática profissional inclusive entre os próprios jornalistas. Recentemente, Jorge Moreno em seu blog no site Globo Oline, afirmava:
‘A crise está afetando e muito a relação entre os repórteres. Se escreve [sic] uma coisa, é logo rotulado. Se a notícia interessa à oposição, é tucano. Se coincide com interesses do governo, é petista. Vejo amizades serem desfeitas pela paixão da crise. (…)’
Já há, no entanto, entre nós, grupos de mídia que praticam abertamente o jornalismo de opinião. O melhor exemplo é certamente dado pelas revistas da Editora Abril. Em conhecida entrevista que concedeu à revista Imprensa, em abril de 1990, o editor Roberto Civita já afirmava:
‘A Abril vem se batendo há 30 ou 40 anos pelo caminho da economia de mercado, da abertura de fronteiras, da globalização da livre iniciativa. O papel da imprensa não é ir trabalhar nos bastidores nem chegar ao ministro X e pressioná-lo; mas, sim, colocar as coisas para o leitor, tentando mudar a cabeça das pessoas nas suas páginas e não nos gabinetes.’
Mais recentemente a revista Exame (nº 860, de 1/2/2006), em editorial sob o título ‘A opinião de Exame‘, evocando os exemplos da Business Week e da The Economist, declarou seguir o princípio de sempre ter ‘opiniões fortes e transparentes – sobre empresas, negócios, tendências ou governos’ e que encara essa posição ‘como um sinal de respeito e de serviço ao leitor’. E mais: que ‘a opinião também se expressa na definição da pauta da revista’.
Nessa mesma edição da Exame, o princípio estava claramente expresso em matéria sob o título ‘Opção pelo Improviso – Avesso à privatização, o governo petista abandonou as rodovias. Agora, em ano eleitoral, corre para tapar buracos’. Mais claro e transparente do que isso, impossível.
Padrões éticos e técnicos
Não deveríamos, então, retornar aos tempos dos jornais politicamente comprometidos, cujas coberturas eram abertamente identificadas com determinadas posições ideológicas e partidárias?
Não constituiria boa ética – e até mesmo bom negócio – que a grande mídia declarasse abertamente suas opiniões? E que reconhecesse que a cobertura que seus jornalistas fazem segue a mesma posição ao invés de proclamar uma objetividade/neutralidade que sabidamente não existe?
Se tivermos uma mídia praticando abertamente o jornalismo de opinião, a avaliação de sua qualidade e de sua correção será feita estritamente dentro de padrões éticos de honestidade intelectual e padrões técnicos de exatidão factual. Isso tornaria os conflitos e a disputa ideológica e política na sociedade mais claras e transparentes, evitaria a falsa discussão sobre a neutralidade dos grandes grupos de mídia e de seus jornalistas e, certamente, atenderia melhor ao interesse público.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)