Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ética, a mídia e o mar de lama

A ética volta a ser manchete, hoje em dia, em todos os meios de comunicação. Num frenesi diário, a mídia busca de todas as formas revelar ao grande público os fatos que se sucedem na área política, ao redor do Congresso e do governo Lula. Claro, atrás de todo esse esforço está a sucessão presidencial, agora, em outubro próximo. O clima é de vale-tudo. Só para relembrar: a mídia, em 1954, praticamente levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio. As manchetes da mídia impressa – a TV inexistia, então – denunciavam o ‘mar de lama’ que estaria a submergir o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, então sede do governo federal. Destaque na campanha anti-Vargas para O Globo e Tribuna da Imprensa, esta sob direção de Carlos Lacerda.

Depois, há exatos 42 anos, novamente a mídia bradava. Agora, contra o presidente João Goulart. As denúncias variavam: iam de corrupção ‘desvairada’ à suposta tentativa de implantar uma república ‘comuno-sindicalista’ no Brasil. Em três célebres editoriais – ‘Chega!’, ‘Basta!’ e ‘Fora!’ –, o jornal carioca Correio da Manhã destacou-se na derrubada de Goulart e da democracia, em abril de 1964. Nos 21 anos seguintes, até 1985, a mídia, com raras exceções, ‘comportou-se’, vigiada de perto pelos censores de plantão.

Neste momento em que a ética volta a ser manchete quase diária, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) decidiu realizar o 1° Seminário Nacional Ética no Jornalismo, encerrado no dia 2 de abril, na cidade paranaense de Londrina, com a presença de mais de 300 participantes, entre jornalistas, professores e estudantes. Nos debates, procurou-se atualizar o Código de Ética da profissão.

Pelo Rio Grande do Sul, participaram do evento em Londrina o presidente do Sindicato dos Jornalistas, José Carlos Torves, e os diretores Celso Schröeder e Marco Chagas. Eles levaram ao encontro as sugestões levantadas, em duas reuniões, pelos integrantes da Comissão de Ética do Sindicato, para aperfeiçoar o nosso Código.

Controvérsia

‘O acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse’, diz o artigo 1° do Código de Ética dos jornalistas. O seminário de Londrina trouxe subsídios para atualizar o documento. Mas, acima de tudo, busca estimular o seu efetivo cumprimento.

Na Carta de Londrina, os jornalistas brasileiros denunciam o poder econômico, a absurda concentração dos meios de comunicação, a censura e a violência – que são ameaças não só à liberdade de imprensa como à própria democracia. ‘A distorção, a manipulação e a deturpação dos fatos de interesse público iludem a sociedade e criam obstáculos ao pleno exercício da cidadania’, acrescenta o documento.

O presidente do Sindicato dos Jornalistas de Goiás e integrante da Comissão de Ética da Fenaj, Luiz Antônio Spada, disse que o seminário representou uma oportunidade de manifestar à sociedade que os profissionais da mídia estão preocupados com a qualidade da informação que levam até ela. Ele observou que o público recebe hoje notícias por meios que extrapolam os parâmetros do atual Código de Ética. ‘Até que ponto é válido, e com quais critérios se pode utilizar uma câmera oculta para conseguir uma informação, ou manipular uma imagem no computador?’, pergunta Spada.

Dilemas

Este ponto foi muito discutido em Londrina, a partir da freqüente utilização pela TV Globo e suas afiliadas, como a RBS, de microfones e câmeras ocultas com o objetivo de desvendar ao público questões delicadas, como o tráfico e a prostituição infantil, entre outras reportagens ‘mascaradas’. Esta questão remete ao recente episódio da invasão da unidade da Aracruz Celulose. Na ocasião, pelo site Coletiva.net, a RBS desencadeou uma polêmica com os concorrentes que apresentaram imagens, fotos e textos do episódio. Para a RBS, não apresentar tais imagens teria sido ‘uma felicidade’, para ‘não compactuar com uma ação criminosa’. Mas e as matérias da RBS, com câmeras e/ou microfones ocultos? Seriam éticas?

Seria ético mentir e disfarçar-se junto ao eventual criminoso para tentar mostrar ao público de rádio ou TV uma verdade, ou uma parte de uma verdade? Esta é uma questão bem atual, que nos remete à História da Filosofia: afinal, o que vem a ser a ética?

Afinal, o que vem a ser a ética? Ética, ensinam os dicionários, é uma parte da filosofia que trata dos valores. Vem da palavra grega ethos, que significa costume, usos e costumes de um grupo, ou de uma sociedade. Dizem filósofos como Aristóteles – considerado o Pai da Ética – que a ética do grupo seria também a ética dos indivíduos. O grupo tenta impor os seus costumes ao indivíduo, ou seja: a sociedade dita as normas de conduta, com critérios e princípios que buscam diferenciar o bem do mal: o que é justo, do injusto, apartando a virtude do vício. Neste sentido, a ética é a moral e todos os seus valores.

A maioria dos filósofos do mundo ocidental, desde os pré-socráticos, no século VI a.C., preocupou-se com os dilemas éticos. Após a morte de Aristóteles nasceu Zenon, fundador da corrente do estoicismo. Zenon foi mais radical: reduziu toda a filosofia à ética, ensina o professor Vitorino Felix Sanson no site www.suigeneris.pro.br.

Entrechoques

Já no mundo oriental, também por volta do século VI a.C., os dilemas éticos surgem a partir da chamada cultura Yangshao. Uma das obras fundamentais da antiga civilização da China, que chegaram até nós, neste século 21, é o Livro das Mudanças, o Yi Jing. Ali são apresentadas as oito direções e as estações do Universo. Diz a obra: depois que surgiram a luz e a escuridão, apareceram a boa sorte e a má sorte. O Yi Jing oferece conselhos para diferentes situações na vida, para que as pessoas de então pudessem controlar os seus próprios destinos. Uma visão bem diferente da dos antigos gregos, como se vê.

Os problemas éticos, após o nascimento da imprensa com Gutenberg, mais o cinema, o rádio e a televisão, e em nossos dias com a internet, se agravam com o surgimento das modernas sociedades de massa. Em paralelo, aparecem os controles sociais bem mais apertados por parte das elites que detêm o poder, da economia à mídia, e que manipulam a tecnoarrogância dos dias de hoje.

É nesse momento que a ética e a mídia se defrontam em entrechoques e repercussões às vezes violentos, muitas vezes surdos. É o que configura a oposição, neste século 21, entre os que lutam, de um lado, pela responsabilidade social – e ética – da mídia. E, do outro lado, ficam os setores retrógrados e monopolistas da mídia, sempre na batalha pelas mentes e corações do público, tentando imprimir um pensamento único e difundir matérias de seus interesses exclusivos, e excludentes.

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Jornalista, integrante da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS