O tribunal da imprensa
A imprensa noticiou com destaque a prisão do cidadão Adauto Gonçalves, no Rio.
O Globo o colocou na primeira página, junto com o crachá que o identifica como funcionário contratado para trabalhar numa obra do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC.
Depois de devidamente carimbado como traficante, o acusado demonstrou que havia cumprido pena, afirmou que tinha deixado o tráfico e apresentou prova de que estava realmente empregado numa empreiteira que toca uma das obras do PAC no Rio.
A empreiteira também emitiu nota dizendo que o considerava em condições de realizar o trabalho para o qual estava contratado, observando que uma das exigências da licitação era a contratação de trabalhadores nas comunidades próximas das obras.
O Estado de S.Paulo fez o reparo, relatando o episódio da prisão, mas não arrisca afirmar que o suspeito é o que diz dele a polícia ou se é vítima de uma injustiça.
Fica agora o leitor sem saber se, de fato, o tráfico tomou conta até mesmo das empreitadas públicas no Brasil ou se os jornais se precipitaram, e o cidadão Adauto Gonçalves foi condenado pela imprensa depois de haver cumprido pena.
A rigor, ele só poderia ter sido preso com um mandado judicial, mas isso é considerado uma firula jurídica nas circunstâncias em que ocorrem as ações policiais nas favelas.
Mas tambem usando um mínimo de rigor, a imprensa não pode chamar de traficante alguém que, tendo cumprido pena, não voltou a sofrer nova condenação.
Não se sabe se e quando, além do Estadão, os outros jornais que aceitaram a versão da polícia vão fazer alguma correção na notícia. Também não se pode prever que efeito teria uma possível retratação, mesmo porque o preconceito da sociedade contra os moradores das favelas induz parte do público a acreditar que, em princípio, são todos bandidos. Fica, assim, o sr. Adauto fichado publicamente como gerente do tráfico, mesmo que venha a provar que, tendo cumprido sua sentença, tornou-se um cidadão como todos os outros.
A menos que se torne uma celebridade, como o ex-traficante de classe média conhecido como Johnny, que inspirou um filme de sucesso, Adauto terá poucas chances de reverter os registros a seu respeito.
A imprensa às vezes funciona como uma espécie de tribunal da inquisição, contra o qual não há argumento.
A opinião do público
Algumas das constatações da última pesquisa Sensus podem surpreender os observadores da cena pública.
Além do fato de que a popularidade do presidente da República não para de crescer, junte-se ao cardápio outras sondagens feitas pelos pesquisadores, e tem-se um bom material para se observar como a sociedade reage aos fatos noticiados.
Alberto Dines:
– Ontem a mídia concentrou-se nos novos índices de aprovação do presidente Lula fornecidos pela nova rodada Sensus/CNI. Não houve tempo para examinar outros dados extraordinários do mesmo levantamento. Exemplo: cerca de 86% dos entrevistados declararam que estão acompanhando ou ouviram falar no assassinato da menina Isabella Nardoni contra cerca de 57% que têm acompanhado ou ouviram falar na CPI dos Cartões Corporativos. Mais surpreendente ainda: para cerca de 71% a mídia tem feito a cobertura do caso Isabella ‘adequadamente, com competência e eficiência’. Somente cerca de 24% desaprovam esta cobertura. A menina Isabella foi assassinada há exatamente 30 dias e uma das poucas questões onde parecia haver algum consenso era sobre o sensacionalismo da mídia. Significa que a sondagem da Sensus está errada nesta questão? Não necessariamente: o grande público vê a mídia de forma acrítica, acredita na mídia, não sabe identificar seus erros. A não ser que alguém os aponte. E aqui a sondagem Sensus oferece outra novidade: quase 9% assistem freqüentemente à programação das emissoras públicas e quase 22% declararam que o fazem às vezes. Convém reparar que o número dos que desaprovam a cobertura do caso Isabella (cerca de 24.%) não está muito distante dos quase 30% (8.5 + 21.9%) que sintonizam as redes públicas. O caso Isabella e suas repercussões estará hoje à noite no ‘Observatório da Imprensa’. Às 22:40, ao vivo pela TV-Brasil e TV-Cultura.