Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Valor Econômico

IMPRENSA MUNDIAL
Matías M. Molina

O jornal da burguesia

‘Numa definição que vale ainda hoje, Lenin disse há quase um século que o ‘Corriere della Sera’ era o órgão mais inteligente da burguesia italiana. Então, como agora, o ‘Corriere della Sera’ (‘Correio da Tarde’) era o diário de maior circulação da Itália, o mais respeitado e o mais influente. Já foi acusado de ‘comunista’, mas ao longo de sua história foi visto principalmente como um órgão ‘conservador e liberal’ ou ‘conservador e moderado’, próximo ao poder.

Seu atual diretor, Paolo Mieli, diz que é eleitor do ‘centro esquerda’, mas que o jornal oscila com naturalidade do ‘centro esquerda’ para o ‘centro direita’. É uma maneira de dizer que é uma publicação moderada. Uma instituição, mais do que um jornal, segundo uma publicação concorrente ou, de acordo com uma revista de extrema esquerda, ‘um símbolo do poder e ao mesmo tempo um instrumento para o exercício do poder’. Isto não impediu, porém, que um de seus diretores desafiasse e enfrentasse Mussolini em um duelo de espada. O ‘Corsera’ ou ‘Corrierone’, como também é chamado, adotou desde o começo uma linha sóbria, típica de alguns jornais ingleses – seu modelo foi ‘The Times’ -, que o diferenciou do resto da imprensa italiana.

Editado em Milão, o centro econômico da Itália, o jornal procurou certo distanciamento de Roma, a capital política, que era vista com desconfiança: a proximidade com o poder poderia corromper ou distorcer o critério editorial. Além de representar os anseios da burguesia, o ‘Corsera’ serviu de tribuna para intelectuais de diversas tendências em sua ‘Página Três’. Esta capacidade de, simultaneamente, chegar até as classes dirigentes e ser palco de debates da literatura, artes e idéias contribuiu para seu prestígio.

Outra característica foi a continuidade e a capacidade de sobrevivência. Conseguiu resistir não apenas aos mais diferentes regimes políticos, mas principalmente a alguns dos proprietários e diretores.

O ‘Corriere della Sera’ tem circulação de 612 mil exemplares. É impresso em sete pontos da Itália, em outras duas cidades da Europa, e nos EUA, Brasil, Argentina e Austrália. É o carro-chefe do RCS MediaGroup, que controla o maior jornal esportivo, ‘La Gazetta dello Sport’, o segundo maior diário da Espanha, ‘El Mundo’, e ampla variedade de revistas, e tem interesses em outros meios. A RCS, resultado da fusão da antiga editora de revistas Rizzoli com a editora Corriere della Sera, é hoje controlada por alguns dos principais grupos empresariais, entre os quais ‘a ala nobre do capitalismo’ italiano, como Fiat, Pirelli, Generali, Intesa, unidos por um acordo de acionistas (Patto de Sindacato) cuja finalidade é manter a independência do jornal.

O ‘Corriere della Sera’ foi fundado em Milão, em 1876, como um jornal conservador. Seu diretor, Eugenio Torelli Viollier, napolitano, tinha trabalhado com Alexandre Dumas em Nápoles e Paris. A precária situação dos primeiros anos assustou alguns sócios. Um deles, Pio Morbio, levou seu cunhado, o industrial têxtil Benigno Crespi, a tornar-se acionista controlador em 1885. A partir desta data, e durante muitos anos, o jornal só deu lucro.

Com a entrada de novos recursos, o ‘Corriere’ reforçou sua cobertura. Gastou fortunas com as viagens de seus correspondentes e com as despesas telegráficas, mas sua circulação e influência cresceram continuamente. Torelli Viollier, que também era sócio minoritário, adotou uma linha liberal, defendendo a abertura do mercado italiano. O interesse de Crespi, como industrial do algodão, era exatamente o oposto – reforçar o protecionismo -, mas nunca interferiu na orientação editorial. O jornal temia o avanço do socialismo e dos sindicatos, mas combateu a linha repressiva do governo. Quando a Itália começou sua expansão na África e na Ásia, o ‘Corriere’ adotou uma política anticolonialista.

Em 1900, Luigi Albertini, com 29 anos, que era o diretor administrativo, assumiu também a direção editorial. Ficou no cargo durante um quarto de século. Albertini deu ao ‘Corriere’ uma estrutura sobre a qual se apoiaram seus sucessores. Ele herdou um jornal sério, rentável e respeitado, mas de dimensões ainda modestas e com gestão artesanal. Fez dele uma grande empresa sólida, moderna, bem equipada. Queria tornar o ‘Corsera’ um órgão de informação confiável e preciso nos mínimos detalhes, na ortografia dos nomes, no vocabulário correto. Montou uma vasta rede de correspondentes e fez acordos editoriais com os melhores jornais europeus. Albertini, que passara um tempo em ‘The Times’, de Londres, o adotou, como fizera Torelli Viollier, como modelo. A sede nova, na Via Solferino, onde até hoje fica a redação, foi desenhada por um arquiteto, jornalista do ‘Corriere’, seguindo as linhas da Printing House Square, então sede de ‘The Times’. Lançou publicações e iniciou eventos para evitar que o jornal ficasse vulnerável a uma crise econômica. Fez um jornal independente dos partidos. Albertini dizia que o ‘Corriere’ tinha que mover-se com o cuidado de um couraçado, nunca com a velocidade de uma lancha torpedeira.

Ele via o jornal como instrumento tanto de orientação como de informação. A linha editorial foi de ativo combate ao radicalismo e de apoio às mudanças moderadas. A instabilidade política que se seguiu ao fim da Primeira Guerra reforçou em Albertini o medo de que a Itália entrasse em um período de turbulência. Ele aumentou suas críticas aos socialistas e, quando Benito Mussolini apareceu no horizonte, pensou que poderia trazer harmonia com justiça.

Essa ilusão foi passageira. Em pouco tempo, o ‘Corriere della Sera’ foi um duro crítico do fascismo e Mussolini decidiu tirar Albertini da frente, recorrendo à família controladora. Com a morte de Benigno Crespi, suas cotas passaram aos três filhos. Mas Luigi Albertini e seu irmão Alberto também se tinham tornado sócios e um contrato assegurava a Luigi o comando da empresa. Os Crespi conseguiram tirar os Albertini do caminho quando descobriram que o contrato tinha sido assinado, mas o cartório não o tinha registrado. Em 1925, tornaram-se donos exclusivos. Albertini disse ao sair que destruir o que tinha construído levaria mais de 50 anos.

Vários diretores se seguiram. Mussolini percebeu que se a linha mudasse radicalmente, o jornal perderia credibilidade e seu apoio teria pouco valor. Por isso, instruiu que o ‘Corriere della Sera’ não deveria vestir a ‘camicia nera’ – a cor da camisa foi um símbolo dos regimes ditatoriais da direita. No entanto, alguns dos diretores foram, em seu entusiasmo para submeter o jornal, além do que o próprio Mussolini tinha pedido. Os irmãos Crespi mantiveram com o fascismo uma proximidade que depois seria perigosa.

Curiosamente, o melhor diretor do ‘Corriere’ na época, Aldo Borelli, era de extração fascista. Mas sua preocupação foi conservar o jornal como o órgão da burguesia e modernizá-lo tecnicamente. Ele manteve e protegeu jornalistas da época de Albertini que não comungavam com o regime. Facilitou a fuga para a América de um redator antifascista, com a passagem paga pelo jornal. Reforçou a colaboração literária e a cobertura internacional, e aumentou a circulação. Borelli saiu com o fim do regime fascista.

Com o retorno da democracia, a família Crespi correu o perigo de perder o controle por suas antigas ligações com o fascismo. A direção foi assumida em 1944 por Mario Borsa, um velho jornalista que tinha deixado o ‘Corriere’ em 1925 com Albertini. Para garantir a sobrevivência, o jornal mudou de nome, primeiro para ‘Corriere d´Informazione’ e depois para ‘Il Nuovo Corriere della Sera’. Borsa conseguiu manter o controle e o jornal voltou a impor-se no mercado. Durante o referendo em 1947 para definir se a Itália seria monarquia ou república, Borsa abriu as páginas aos argumentos dos dois lados, mas nos editoriais, contra a vontade dos proprietários, levou o ‘Corriere’ para o lado republicano, arrastando um bom número de indecisos. O regime republicano venceu por margem estreita e o diretor perdeu o emprego.

Se os anos de Albertini foram a ‘era de ouro’ do jornal, o período do fim da década de 40 e a de 50 foi o período do imobilismo, ‘a era do letargo’. Se Albertini dizia que o ‘Corriere’ tinha que manobrar com a prudência de um couraçado, primeiro Guglielmo Emanuel e depois Mario Missiroli, que assumiram a direção, preferiram deixar a nave flutuar calmamente em águas tranqüilas. Missiroli era de enorme coragem pessoal. No entanto, como diretor do ‘Corriere’, mostrava pânico para decidir. O ideal era não fazer nada. Via seu papel como ‘guardião da tradição’. Tinha pavor de desagradar a alguém ligado à família Crespi, a seus amigos ou ao governo. E ficou preocupado em não assustar o leitor. Politicamente, o jornal aprofundou seu lado conservador e mostrou pouca iniciativa. Era um ‘jornal embalsamado’.

Foi sucedido por Alfio Russo, que contratou jornalistas, ampliou a cobertura, aumentou a circulação. A linha editorial pouco mudou, mostrando exagerada reverência pelos contínuos governos da Democracia Cristã, que assumira o poder nos anos 40. A empresa manteve uma excelente rentabilidade. O sucessor de Russo, que como seus antecessores perdeu o emprego sem prévio aviso, foi Giovanni Spadolini, um respeitado professor universitário. diretor do ‘Il Resto del Carlino’, de Bolonha. Um dos seus erros foi atribuir demasiada pompa a seu cargo, o que não foi bem visto pelos Crespi. Manteve o jornal numa posição de centro esquerda, mas mostrou-se demasiado preocupado com as manobras partidárias e, segundo seus críticos, com seu futuro político. Em geral, o jornal parecia apático. Spadolini deixou o cargo em circunstâncias que pareceram humilhantes. A redação parou por um dia. Anos depois, ele era presidente do Senado e primeiro-ministro.

Uma figura que contribuiu para mudar o destino da empresa foi Giulia Maria Crespi, filha de um dos três herdeiros de Benigno. Como os outros membros da família, ela não entendia nada de jornal, mas queria contribuir para mudar a Itália e o ‘Corriere’, que em sua opinião estavam demasiado parados. Impaciente e mais ativa do que seus primos, Giulia Maria pressionou pela mudança do jornal e dos diretores. Foi uma figura controvertida. Era chamada a ‘czarina’, pelo tom imperioso, e a ‘condessa vermelha’, por supostas tendências de esquerda que na verdade não tinha, embora alguns de seus amigos adotassem posições radicais.

Depois de Spadolini, em 1972, assumiu a direção do ‘Corriere della Sera’ Piero Ottone, um antigo correspondente do jornal que dirigia ‘Il Secolo XIX’, de Gênova. Ele foi tão controvertido quanto Giulia Maria. Seus inimigos disseram que fez o jornal que a proprietária queria. Piero Ottone (Pier Leone Mignanego) mudou e arejou o jornal. Deixou de apoiar automaticamente a Democracia Cristã e tornou o ‘Corriere’ mais aberto aos pontos de vista de todas as tendências políticas, inclusive as de esquerda. Tratou de questões delicadas como o divórcio, meio ambiente, feminismo. Segundo um concorrente, o jornal passava de órgão da burguesia conservadora para órgão da burguesia liberal. Os leitores mais conservadores ficaram chocados. A principal crítica a Ottone, e a mais consistente, foi que modificou as relações internas e incentivou o ‘assembleismo’, ou segundo seus inimigos a formação de ‘sovietes’, com reuniões intermináveis, nas quais se discutiam todas as questões e das quais participavam líderes sindicais de outros grêmios. Para usar a metáfora de Albertini, Ottone comandou o ‘Corriere’ não com o movimento de um couraçado, mas com as manobras de uma lancha torpedeira.

É possível que depois dessa fase conturbada o jornal se assentasse e absorvesse, aos poucos, tanta mudança. No entanto, a situação financeira, problemática desde o fim da década de 60, tornou-se cada vez mais difícil. Os Crespi decidiram vender. Giulia Maria quis comprar a parte dos primos, mas não conseguiu financiamento. Eles venderam para Giovanni Agnelli, da Fiat, e Angelo Moratti, do setor de petróleo. Ela negociou com os Rizzoli, editores de revistas, que acabaram comprando também as partes de Agnelli e de Moratti.

Nesse período, saíram do jornal alguns dos jornalistas mais tradicionais, liderados por Indro Montanelli, a figura mais ilustre da imprensa italiana. Em 1974 fundaram ‘Il Giornale Nuovo’, que tirou menos leitores do ‘Corriere’ do que tinham imaginado. Um concorrente mais sério, no longo prazo, nasceu em 1976, com ‘La Repubblica’, que durante a década de 90 tornou-se líder em circulação.

Nos anos 70 e 80, o ‘Corriere’ atravessou o período mais conturbado de sua história. Os Rizzoli, que se endividaram para comprar o jornal, tiveram que fazer acordos secretos com um grupo misterioso, ‘um poder paralelo’, ligado ao Banco do Vaticano e à loja maçônica Propaganda 2, de Licio Gelli e Roberto Calvi, que adquiriu parte do capital e indicou o diretor do jornal. Quando o escândalo veio à tona, Angelo Rizzoli e seu principal executivo foram presos. Calvi apareceu enforcado sob uma ponte do Tâmisa, em Londres. Gelli foi preso, mas fugiu. O diretor, Franco Di Bella, teve que demitir-se. O jornal perdeu credibilidade, seu principal patrimônio, e circulação. Os Rizzoli venderam a empresa, a RCS.

O capital do jornal da burguesia foi distribuído entre alguns dos mais famosos representantes dessa classe. A imagem do ‘Corriere’ voltou a melhorar, recuperou autoridade, rentabilidade e a liderança na circulação. Em meados de 2005 redesenhou suas páginas, reduziu ligeiramente o tamanho e introduziu a cor em todo o jornal.

Falta-lhe, porém, continuidade na direção. O couraçado não encontrou um rumo firme porque trocou demasiadas vezes de piloto. Enquanto seu concorrente ‘La Repubblica’ teve apenas dois diretores em seus quase 30 anos de existência, o ‘Corsera’ teve quase dez nesse período. Em 2004, depois de seis anos no comando, Ferruccio De Bortoli teve que deixar a direção por pressão – segundo se afirma – do primeiro-ministro, cujos advogados o processaram duas vezes. O diretor seguinte durou seis meses. O atual é Paolo Mieli, que já tinha ocupado anteriormente o cargo.

Apesar de tudo é o jornal italiano de maior prestígio e um dos melhores do mundo. ‘The Economist’ o considera o meio de comunicação mais independente da Itália. Mas alguns observadores acreditam que na briga com ‘La Repubblica’, perdeu parte de seu foco e que algumas de suas antigas funções foram tomadas pelo jornal de economia ‘Il Sole 24 Ore’.

Um investidor praticamente desconhecido, Stefano Ricucci, comprou neste ano mais de 20% do capital da RCS MediaGroup, tornando-se o maior acionista. Ninguém sabe de onde veio o dinheiro nem quais são suas intenções. Os participantes do acordo de acionistas ficaram alarmados e se uniram contra ele, que vendeu parte de suas ações. Não conseguiu o controle, mas há ainda incertezas em relação ao futuro do jornal que Torelli Viollier fundou.’

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