Semeando a confusão
A imprensa brasileira embarcou rapidamente na crise diplomática internacional que supostamente ameaçou se instalar no Haiti quando as forças armadas dos Estados Unidos ocuparam o aeroporto de Porto Príncipe.
Não era nada, apenas problemas operacionais típicos de um país mergulhado no caos, sem profissionais e equipamentos para as tarefas essenciais, sem autoridades para referendar critérios de administração de passageiros em trânsito.
A chegada constante de aviões com suprimentos, grupos de voluntários e medicamentos, de várias partes do mundo, em coordenação na origem, agravava a situação no aeroporto semidestruido.
Segundo os jornais, um avião da Força Aérea Brasileira que levava um hospital de campanha, com médicos e remédios, demorou 24 horas para obter permissão de aterrissagem.
O episódio, somado ao fato de as tropas americanas terem instalado um perímetro de segurança sob seu controle em torno do aeroporto, levou alguns comentaristas apressados – e loucos por mais uma crise – a interpretar a operação corriqueira como um sinal de que as tropas brasileiras haviam sido desbancadas.
No final de semana, jornais brasileiros especulavam que os Estados Unidos pretendem enviar 10 mil soldados e retirar do Brasil o comando das forças da ONU.
Na sexta-feira, alguns sites informativos já haviam esclarecido que a ONU considerava importante reforçar a presença militar em Porto Príncipe, por causa de violências praticadas nas favelas da cidade por gangues de criminosos que haviam fugido de prisões destruídas pelo terremoto.
Já havia sido noticiado, então, que a Minustah, força de paz internacional, continuaria sendo comandada por militares brasileiros, e que os americanos ajudariam a organizar a ajuda humanitária e ofereceriam equipamentos para restabelecer condições mínimas de funcionamento da infraestrutura do país.
No entanto, quem ouviu programas jornalísticos de rádio no final de semana ainda era submetido às especulações dos “palpiteiros” de sempre, plantonistas do telefone celular, que ficam permanentemente à disposição da imprensa para dar pitacos sobre qualquer coisa.
Do Programa Nacional de Direitos Humanos ao desempenho da economia, da crise no Haiti à questão climática, nada escapa a esses urubus oportunistas, especializados em fazer as coisas parecerem piores do que já são.
O circo da imprensa
Alberto Dines:
– O Haiti já não existe, este foi o título de primeira página de ontem, domingo, no jornal espanhol El País. Ruíram ou foram soterradas pelo cismo as precaríssimas instituições do estado. Não se sabe e nunca se saberá quantos haitianos morreram. Qualquer estatística será enganosa, as divergências entre o número de vítimas (de 40 a 120 mil) talvez seja o aspecto mais aterrador da situação: nenhuma autoridade, municipal ou estatal, é capaz de assumir responsabilidades, tomar decisões e determinar providências, exceto o comando brasileiro da Missão da ONU que se encarrega da segurança e os americanos que coordenam a ajuda humanitária.
Uma catástrofe sem dados, sem termos de comparação, um apocalipse sem gráficos, infográficos, baseado em fotos dantescas e histórias individuais horripilantes, anônimas, mudas, sem lágrimas – quanto tempo conseguirá a mídia internacional manter aquilo que foi o Haiti nas manchetes e na “escalada” da mídia eletrônica?
E nossa solidariedade, quanto durará? Nossa compulsão para driblar tragédias, principalmente as distantes, quando começará a se impor ao dever humanitário de compartilhar sofrimentos? Estamos no verão, temporada de férias, prazeres, os anunciantes querem a cobertura dos desfiles de moda, a “São Paulo Fashion Week” está ai.
Almas machucadas pela dor resistem aos impulsos compristas e a mídia adora bolhas, vive delas. Logo, logo, voltaremos às abobrinhas e irrelevâncias, à fleuma e ao burocratismo. A revista IstoÉ minimizou o Haiti na capa, no domingo o Estadão acabou com o caderno haitiano e passou a cobertura para as páginas internacionais. As tragédias em Angra, Ilha Grande, S. Luiz de Paraitinga e Porto Alegre aconteceram há18 dias e neste fim de semana já haviam evaporado. Enterrados os mortos, estabelecido algum tipo de rotina em Porto Príncipe, o que restou do país terá ainda menos interesse. A indústria da notícia – ou circo da notícia – não suporta continuidades.