Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os atores principais ficaram na platéia

O projeto de lei do Senado que altera a lei nº 9.504, relativa a campanhas eleitorais, e que foi aprovado na terça-feira (18/4), foi proposto pelo senador Jorge Bornhausen (PFL-SC) em 9 de agosto de 2005. Ao longo dos oito meses e dez dias entre um momento e outro, o projeto tramitou no Senado e foi aprovado, passou à Câmara dos Deputados, onde também foi aprovado e voltou ao Senado.

Nesse período de quase nove meses, 59 jornais diários de todos os estados publicaram nada menos de 902 matérias sobre o assunto (incluindo-se proposições e discussões outras, como por exemplo os trabalhos da comissão especial criada pelo ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Carlos Velloso, para propor alterações nas normas eleitorais). Ver todas essas matérias aqui.

Durante esse tempo, a cobertura da imprensa limitou-se a relatar a tramitação do projeto e as manifestações de seus promotores, os quais se distribuíram por todos os partidos.

Vozes críticas em relação tanto à oportunidade daquelas mudanças quanto ao seu conteúdo praticamente não foram ouvidas.

O que a imprensa retratou foram conflitos de opinião intramuros, e sempre a partir do ponto de vista dos beneficiários da ‘minirreforma’ – os políticos. Uma perspectiva que levasse em conta os interesses dos principais atores no processo eleitoral – a saber, os eleitores – passou quase completamente em branco.

Foi só depois de 18 de abril, ou seja, depois que a coisa estava liquidada, que os jornais ouviram opiniões discordantes. É claro que, a essa altura, tais ‘repercussões’ (em geral imaginadas a partir do ponto de vista do diagramador, que distribui na página fotinhos e umas frases) de nada servem, prestando-se apenas a compor um muro de lamentações.

Origem suspeita

A própria oportunidade das mudanças não recebeu da imprensa uma cobertura que levasse em conta a possibilidade de que, talvez, a motivação não tivesse sido a melhor do mundo. A imprensa meramente cobriu o fato de haver uma proposta de alteração de regras para campanhas eleitorais, sem fazer a pergunta óbvia: isso é mesmo necessário?

Fez isso porque comprou o peixe podre da desculpa do caixa 2 eleitoral, inventada para explicar o mensalão. Funcionou assim: instruídos por advogados criminalistas, os sujeitos que apanharam dinheiro vivo do valerioduto na boca do caixa do banco (só isso seria suficiente para concluir que estavam metidos em atividades criminosas, sendo todo o resto acessório) inventaram a história de que a grana servira para pagar dívidas eleitorais. Apesar de não haver nem um único indício na direção da veracidade dessa explicação, ela foi engolida com casca e tudo, em primeiro lugar pela imprensa.

Com isso, sacramentou-se a versão de que o mensalão tinha a ver com eleições, e não com roubalheira pura e simples.

Como o mensalão se ‘explicava’ como meio de transferir recursos de caixa 2 eleitoral, passou-se a considerar que o problema era esse – daí as discussões completamente inúteis que se seguiram, a respeito de financiamento público exclusivo, de como eliminar o caixa 2 (uma impossibilidade) etc. etc. O tal projeto de minirreforma tem a mesma origem suspeita – suspeita exceto para a maior parte da imprensa, que, entregando-se à estratégia dos delúbio-valerianos, cobriu o assunto de acordo com o ponto de vista que lhes interessava.

Informação prejudicada

Como a imprensa cobriu o que se apresentava na superfície, com aquela típica tendência de apenas replicar declarações e nunca fazer a segunda pergunta, deixou passar sem mais essa nem aquela os diversos contrabandos contidos na legislação aprovada.

Alguns, agora, descobrem que havia problemas. Mas agora não adianta mais, pois a coisa foi aprovada.

Limitar-me-ei a um de vários exemplos. A certa altura, diz lá a minirreforma:

‘Art. 54. Os programas de rádio e de televisão e as inserções a que se refere o art. 51 serão gravados em estúdio e deles somente poderão participar o candidato e filiados ao seu partido, sendo vedadas as gravações externas, montagens ou trucagens, computação gráfica, desenhos animados, efeitos especiais e conversão para vídeo de imagens gravadas em películas cinematográficas.’

Em outras palavras, é a lei Falcão rediviva. O significado dessas regras é profundo e muito prejudicial ao eleitor. Basicamente, campanhas eleitorais radiofônicas e televisivas, em particular estas, não poderão transmitir informação visual a quem vota.

Recursos visuais são importantes não por motivos estéticos, mas porque imagens são poderosos veículos de transmissão de informação. Vejamos alguns exemplos de informação que sofrerá:

** Gráficos animados sobre qualquer assunto, de mortalidade infantil a taxa de juros. Lula não poderá mostrar seus números dessa forma e seus adversários não poderão contra-atacar com evoluções desfavoráveis.

** Associações entre pessoas. A oposição a Lula não poderá exibir filmes ou montagens mostrando o presidente com a turma de mensaleiros, e o presidente não poderá mostrar os vestidinhos de Dona Lu Alckmin, ou as tramóias publicitárias em que se meteu o ex-governador paulista.

** O governador que busca reeleição não poderá exibir a obra X ou Y, e seu adversário será impedido de mostrar os buracos nas estradas do governador.

** Manchetes de jornais sobre malfeitos dos adversários não poderão ser exibidas nas campanhas dos candidatos.

Contrabando antieleitor

Os exemplos poderiam estender-se, mas acredito que aqueles mencionados acima bastem para dar uma idéia do que foi aprovado.

Ora, como é possível que tal despropósito seja apresentado como medida saneadora?

No que nos interessa aqui, como é que a imprensa deixou isso passar batido durante nove meses, só acordando (limitadamente) para o problema depois que já não há o que fazer?

Note-se que o dispositivo sobre rádio e TV sempre esteve no projeto. Não surgiu na última hora. A imprensa poderia ter batido nisso desde o primeiro instante. Não o fez porque foi incompetente.

Das 902 matérias jornalísticas publicadas entre 9/8/05 e 21/4/06 que tratam do assunto ‘Contas eleitorais’, apenas 88 mencionam a palavra ‘televisão’ (ver aqui). Destas, apenas onze (onze!) foram publicadas em 2005.

Na quase totalidade dessas 88 matérias, a palavra ‘televisão’ aparece porque se faz menção ao dispositivo legal, sem que se tenha procurado ouvir opiniões discordantes. A saber, o contrabando antieleitor estava lá para qualquer um ver, mas os jornais o ignoraram.

Um papelão.

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Jornalista, diretor-executivo da Transparência Brasil