A história de um jornal essencial
A editora Manifesto lança nesta segunda-feira, em São Paulo, o livro “Jornal Movimento, uma reportagem”, escrito e organizado por Carlos Azevedo com reportagens de Marina Amaral e Natalia Viana.
Trata-se de um ambicioso registro de uma das mais importantes iniciativas de resistência contra a ditadura militar através da imprensa.
Entre 1975 e 1981, dezenas de jornalistas, intelectuais, parlamentares e estudantes se dedicaram a produzir um jornal político, de manifesta oposição à ditadura, com uma pauta explícita que tinha seu eixo na defesa das liberdades democráticas, da emancipação dos trabalhaores e dos interesses nacionais.
Cerca de 500 acionistas adquiriram cotas do jornal e centenas de outros apoiadores fizeram doações, contribuiram profissionalmente e se dedicaram a outras tarefas de suporte à iniciativa.
Enquanto a imprensa tradicional ainda mantinha atitudes no mínimo ambíguas com relação à falta de liberdades civis, Movimento deu visibilidade às mobilizações de trabalhadores, à reorganização dos agricultores e foi o berço de campanhas memoráveis, como a defesa da anistia e da Assembléia Nacional Constituinte.
Mesmo fustigado pela censura durante boa parte de sua existência, o jornal venceu a “máquina de impor silêncio”, como destaca a introdução do livro.
O ano de 1975 foi crucial para a retomada da democracia no Brasil: empenhado no processo de abertura “lenta, segura e gradual” proposta pelo então presidente, general Ernesto Geisel, sob a oposição da chamada “linha dura” – oficiais que preferiam manter o regime de controle social mais severo –, o governo militar mostrava suas grandes fissuras.
Deputados do chamado grupo “autêntico” do então MDB – Movimento Democrático Brasileiro – entendiam que a mudança do regime não se completaria sem uma ampla mobilização da vontade civil.
Embora a censura prévia tivesse sido suspensa no jornal O Estado de S.Paulo, cujos controladores haviam rompido com a ditadura poucos anos antes, ainda se respirava no país um ambiente de pouca liberdade.
Pior do que isso: nos porões da ditadura, armava-se uma conspiração que tinha como ponto de partida a prisão de pelo menos 2 mil representantes da resistência pacífica contra o regime.
Um Brasil à margem da imprensa
O semanário surgiu no mesmo ano em que um grupo de oficiais, tendo à frente o general Milton Tavares de Souza, organizador do sistema de repressão do regime, e o general Ednardo D’Avila Mello, comandante do II Exército em São Paulo, planejavam a execução de um golpe dentro do golpe militar.
Tavares, que havia comandado os assassinatos de prisioneiros durante a repressão à guerrilha do Araguaia, e de camponeses em diversos conflitos agrários pelo interior do país, armava uma crise institucional, com o objetivo de interromper o processo de liberalização relativa.
Ele representava um contingente pequeno mas atuante de militares que acreditavam que a ditadura poderia durar para sempre.
A intenção era prender os integrantes de uma extensa lista formada principalmente por jornalistas, professores universitários e líderes de movimentos populares.
A morte do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, com a forte reação da sociedade, interrompeu a operação.
Desde 1974, a chamada grande imprensa havia comprado a idéia da abertura gradual do regime, mas parlamentares da oposição, em contato com lideranças da resistência no interior do Brasil, sabiam que continuava em andamento a estratégia do extermínio, com apoio do general Geisel, segundo relata o jornalista Elio Gaspari em seu livro “A ditadura derrotada”, lançado em 2003.
Sem a mobilização da sociedade, o conflito interno poderia se resolver em favor da chamada “linha dura”, tendo como consequência o descontrole das forças de repressão e um provável aumento da violência institucional.
Era preciso criar na imprensa uma alternativa à docilidade dos grandes jornais, que suportavam os desmandos do governo na ilusão de que estavam apoiando o processo proposto por Geisel.
O livro conta essa história de resistência, mas vai além: questiona por que razão as mesmas forças políticas que se uniram naquela época para resistir à ditadura não são capazes, em plena vigência de liberdades democráticas, de produzir uma alternativa à imprensa controlada por grandes grupos econômicos.
A obra vem acompanhada de um disco que contém a reprodução integral de todos os números de Movimento, inclusive os que foram totalmente censurados.
São 334 edições que cobrem o período crucial do fim do regime militar.
Ali estão registrados os movimentos de um Brasil que a grande imprensa não enxergava ou que não queria retratar.
Mais do que isso, trata-se da aplicação do princípio segundo o qual a tarefa do jornalista não é simplesmente descrever o mundo, mas ajudar a transformá-lo.