O renascimento da História
Dois textos publicados neste final de semana induzem a reflexões interessantes sobre a questão da História vista sob o olhar cotidiano da imprensa.
Um deles, publicado na Revista, suplemento dominical do Globo, usa uma disputa entre herdeiros do líder comunista Luiz Carlos Prestes para revisitar o núcleo do conflito ideológico que marcou o século XX, em sua versão nacional.
O outro, uma entrevista publicada na Folha de S.Paulo, expõe uma revisão do historiador americano Francis Fukuyama, que há 23 anos decretou – com generoso suporte da mídia – o fim da História e de toda ideologia.
A Revista do Globo faz um relato da controvérsia entre a primogênita de Prestes, Anita Leocádia, filha de sua relação com a alemã Olga Benário, e Maria Prestes, mãe dos outros sete filhos do “cavaleiro da esperança”.
A questão começou quando Maria Prestes doou à Biblioteca Nacional documentos, fotografias e cartas familiares que revelam aspectos da vida íntima do ex-militar que se dedicou a combater o capitalismo e as oligarquias.
A revelação de uma rotina quase normal na vida de um personagem que passou grande parte de sua existência na clandestinidade, no exílio ou em prisões, atiça a curiosidade de pesquisadores.
Ao mesmo tempo, reduz a distância percebida entre a História propriamente dita e o período que Fukuyama considera como não História.
A entrevista do cientista político americano, publicada na Folha neste domingo, dia 15, foi motivada por artigo que ele produziu para a última edição da revista Foreign Affairs, publicação científica sobre relações internacionais, com análises do cenário global sob o ponto de vista dos Estados Unidos.
A mesma publicação abrigou, há 23 anos, um amplo debate sobre outro artigo de Fukuyama, que saiu originalmente na revista The National Intereste especulava sobre possíveis consequências da Perestroika, política de abertura do então lider soviético Mikhail Gorbachov.
Com a queda do Muro de Berlim, alguns meses depois, Fukuyama foi elevado à categoria de guru pela imprensa americana, e – por extensão natural – transformou-se em uma espécie de guia espiritual da imprensa brasileira, inspirando dezenas de articulistas empenhados em consolidar a tese do consenso de Washington a respeito da superioridade do liberalismo absolutista sobre qualquer outro conceito de organização social e econômica.
E agora, Josés?
A retomada da memória de Prestes, ainda que vagamente revolvida em meio a manifestações de ciumes domésticos, tende a reduzir, nos leitores, a sensação de distância entre o Brasil contemporâneo e sua história política recente, que foi interrompida por vinte anos de ditadura militar.
A revisão feita por Fukuyama sobre sua própria tese produz, ao contrário, um efeito de distanciamento, fazendo com que estes 23 anos entre a queda do Muro de Berlim e o advento da pior crise em toda a história do capitalismo pareça ainda maior.
Fukuyama volta ao noticiário justamente por defender um “novo populismo” e uma maior intervenção e regulação do Estado para conter os excessos do liberalismo.
Se Francis Fukuyama parece hoje contratidório é porque, na origem, suas idéias sobre o fim da História foram transmitidas numa cadeia de propaganda ideológica da imprensa – então engajada na tese de que toda utopia coletivista estaria enterrada sob a suposta supremacia e infalibilidade dos dogmas capitalistas.
Omitiu-se, por exemplo, que o pressuposto de Fukuyama tinha como base o raciocínio hegeliano sobre o “motor” da História, segundo o qual o enredo histórico nasce das tensões dialéticas entre uma tese e uma antítese. Na visão de Fukuyama – que muitos intelectuais sérios ignorados pela imprensa consideram primária e inconsistente – o fim da História se dá porque, tendo desaparecido o mundo socialista, desaparece também a antítese que se opõe à tese da supremacia do capitalismo e, portanto, deixa de existir a síntese histórica dessa relação.
Interessante observar como o conceito proposto pelo cientista político americano ganhou destaque nas duas últimas décadas e como ele ficou esquecido logo após a crise financeira de 2008, que desnudou a vulnerabilidade do liberalismo econômico absoluto.
Também é curioso notar que, agora que Francis Fukuyama decide revisar sua afirmação sobre o fim da História e resolve advogar um papel mais relevante para o Estado, apenas a Folha de S.Paulo tenha se sentido na obrigação moral de ouvir seus novos argumentos.
Agora, Fukuyama simplesmente afirma que o liberalismo econômico representa um perigo para a democracia. Defende explicitamente a volta de “uma maior regulação estatal e políticas sociais que preservem os ganhos da classe média e encorajem a ascensão dos pobres para a classe média”.
Para nós, brasileiros, isso não é exatamente uma novidade.
E agora, Josés? – Que fazer com todos aqueles artigos e editoriais condenando as políticas sociais e o papel do Estado como regulador da economia?