A Justiça sob suspeita
A imprensa brasileira finalmente coloca a crise do sistema judiciário onde deveria estar: nos tribunais, e não no Conselho Nacional de Justiça.
Depois de quase três meses de polêmicas que chegaram ao topo do Judiciário, envolvendo ministros do Supremo Tribunal Federal, os jornais fizeram o básico: foram conferir na origem as suspeitas que mobilizaram a corregedoria de controle externo da magistratura.
Resultado – evidências fortíssimas de que um grupo de desembargadores paulistas furou a fila das prioridades e aprovou o pagamento, para si mesmos, de alguns milhões de reais em benefícios controversos.
O atual presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo é citado como tendo recebido a quantia de R$ 400 mil. Ouvido pela Folha, ele não nega e afirma que não houve qualquer irregularidade, pois “o valor recebido refere-se a despesas médicas e custeio de remédios de uso continuado por seus familiares”.
O jornal não esclarece qual a terrível moléstia que afeta os familiares do desembargador, mas os leitores ficam sabendo que é absolutamente legal “o critério de antecipação de indenização de férias não gozadas para custeio de despesas médicas”.
Mais difícil é explicar os valores morais envolvidos na operação “fura-fila” – juizes ouvidos pela reportagem observam que, mesmo em caso de necessidade médica, o normal é que os desembargadores usem seus próprios recursos ou apelem para empréstimos para não passar na frente de outros magistrados.
Um dos casos que estão sendo analisados pelo Órgão Especial, colegiado formado por 25 desembargadores da cúpula do Tribunal de Justiça, exige esclarecimentos sobre os benefícios de alto valor pagos a um grupo de magistrados, entre eles um ex-presidente e ex-integrantes da Comissão de Orçamento e Finanças.
O ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo apontado pela Folha recebeu R$ 1,5 milhão.
Além de ferir o princípio da isonomia e da impessoalidade, os beneficiários desses pagamentos são suspeitos de haver, em proveito próprio, manipulado processos no exercício das funções na comissão engarregada das finanças do Tribunal.
Boas e más intenções
O noticiário desta sexta-feira, dia 20, oferece uma interpretação menos prosaica para a frase do ministro Marco Aurelio Mello, publicada no dia anterior como manchete do jornal Brasil Econômico. Ao afirmar que ganha pouco e que seu bem-estar é garantido pelo salário da esposa, o ministro criticou a presidente do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon: “De boas intenções o inferno está cheio”, disse o ministro.
Mello está carregado de razão. Não bastam as boas intenções. Mas o propósito da corregedora de investigar sinais de movimentações financeiras atípicas envolvendo juizes e servidores da Justiça, que provocou a crise corporativista no Judiciário, acaba revelando muito mais do que suas meritíssimas eminências gostariam de ver exposto ao público.
Para começo de conversa, o notório caso Lalau e outras histórias pouco edificantes já comprovaram que há, sim, bandidos ocultos sob a toga da magistratura.
E o Estadão acaba de trazer à tona uma investigação da Polícia Federal no Tribunal Regional Eleitoral do Rio, provocada por um dos casos de operações financeiras que a “boa intenção” da corregedora Eliana Calmon julgou suspeitas.
Segundo o Estadão, a Delegacia de Combate a Crimes Financeiros da Polícia Federal vai rastrear os R$ 282,9 milhões movimentados apenas em um ano por um funcionário do TRT-RJ.
Ele seria a ponta mais visível de um esquema montado dentro do tribunal para lavagem de dinheiro.
O funcionário em questão foi contratado em cargo de confiança, sem passar por concurso público, tendo como credencial mais valiosa o fato de haver sido preso, anteriormente, quando atuava como doleiro.
Apesar do sigilo das investigações, não é absurdo supor que o responsável por sua contratação é o primeiro da lista de autoridades a serem investigadas.
E como se sabe que essas contratações passam necessariamente por um colegiado, são suspeitos todos os funcionários de alto escalão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, inclusive os magistrados com responsabilidades administrativas.
A polêmica certamente vai prosseguir nos órgãos superiores da magistratura, com muitas frases de efeito e alguns ditados banais, mas a realidade é que, a partir das desconfianças da corregedora Eliana Calmon, foi aberto ontem o inquérito para investigar “crime de lavagem de dinheiro proveniente de fraude contra o sistema financeiro perpetrado por organização criminosa” num importante tribunal do país.
Isso faz lembrar que o inferno pode mesmo estar cheio de boas intenções, mas são as más intenções acobertadas pelo corporativismo que fazem do Brasil o paraiso do crime de colarinho branco.