Contornando o essencial
“O capitalismo do século XX está falhando em atender a sociedade do século XXI. Perdemos a bússola moral”. A frase da economista Sharan Burrow, secretária-gera da ITUC, sigla em inglês que representa a Confederação Sindical Internacional, poderia ser mais significativa com uma pequena alteração: “A democracia liberal do século XX está falhando em atender a sociedade do século XXI. Perdemos a bússola moral”.
Sharan Burrow, cuja entidade fala em nome de 175 milhões de trabalhadores afiliados a sindicatos em 151 países, fez a declaração durante a abertura do Forum Econômico Mundial, em Davos, na Suiça, que merece cobertura apenas parcial da imprensa brasileira.
Parte da mídia nacional, entre elas o Estadão e a edição online da revista Veja, destacam sua frase nesta quinta-feira, dia 26, mas apenas a imprensa internacional deu o espaço devido à sua reflexão.
Ao lembrar que a crise econômica mundial tirou o emprego de 200 milhões de pessoas em todo o mundo e que 45 milhões de jovens ingressam anualmente no mercado de trabalho e não encontram oportunidades, Burrow propôs uma atualização dos debates sobre o capitalismo sob o ponto de vista moral.
Essa é uma discussão em falta na imprensa. Mesmo quando antigos defensores do liberalismo econômico radical se propõem a rever seus conceitos, como fez recentemente o cientista político americano Francis Fukuyama, os jornais fazem o registro burocraticamente e deixam o assunto de lado.
A declaração da dirigente sindical poderia ser estendida para uma reflexão a respeito da democracia liberal, associada por Fukuyama ao triunfo do capitalismo sobre outras formas de organização da economia.
A grande repercussão do livro que transformou Fukuyama em celebridade instantânea em 1992 – “O fim da História e o último homem” – não encontra correspondente, duas décadas depois, nos recentes debates sobre a incapacidade do sistema econômico liberal de responder às demandas e desafios da sociedade contemporânea.
Uma ampliação desse debate através da imprensa ajudaria os brasileiros – principalmente aqueles mais educados e influentes – a entender como o recente desenvolvimento do Brasil tem a ver com o fato de o governo Lula da Silva ter enveredado por um caminho oposto ao que indicava o falso consenso que Fukuyama interpretava.
Democracia e moral
Nada a estranhar quanto ao fato de a imprensa brasileira se omitir diante de questões que colocam em xeque suas convicções ideológicas.
Relendo o artigo original que deu origem ao livro de Francis Fukuyama, ressalta-se um detalhe que foi atropelado no noticiário que se produziu posteriormente em torno do seu livro famoso.
O texto inicialmente publicado por Fukuyama na revista americana National Interest em meados de 1989 tinha o seguinte título: “O fim da História?” – assim, com ponto de interrogação no final – e continha uma especulação na qual ele questionava se a decadência do império soviético representaria o fim do conflito ideológico entre capitalismo e comunismo como motor da História.
O ponto de interrogação desapareceu nas citações posteriores e, quando o cientista político americano, animado com a expansão do capitalismo após a queda do regime soviético, se sentiu mais seguro em suas especulações, alguns analistas apressados chegaram a compará-lo a Karl Marx.
Mas a obra de Fukuyama não resistiu ao teste da História. Em menos de duas décadas, o regime de liberdade plena para o capital financeiro produziu a maior crise econômica de que se tem notícia desde o advento do capitalismo.
Enquanto isso, economias emergentes que não seguiram a cartilha do consenso liberal de Washington se transformam no último refúgio do capital internacional.
Quando afirmou que o fim da Guerra Fria poderia estar sinalizando também o fim da evolução ideológica da humanidade e “a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final do governo humano”, Fukuyama estava atando o sistema econômico ao regime político.
Ao questionar a validade moral do capitalismo do século XX na sociedade mais complexa, globalizada, hipermediada e diversificada do século XXI, a dirigente sindical Sharan Burrow abre uma oportunidade para o debate sobre a evidente incapacidade da democracia liberal de representar os interesses dessa mesma sociedade.
No Brasil, como em outros países, a apropriação do Estado por grupos de interesse econômico disfarçados de partidos políticos, a instrumentalização de instituições fundamentais como a Justiça em favor de meia dúzia de privilegiados, o abuso da força policial na ocultação de problemas sociais – tudo isso é parte da questão que ela levanta.
Mas a imprensa brasileira não parece alcançar essa dimensão da realidade.