Instituições contaminadas
Reportagens nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo revelam nesta terça-feira, dia 19, que o juiz federal Paulo Augusto Moreira Lima, encarregado do processo original contra o bicheiro Carlos Cachoeira em Goiás, pediu afastamento do cargo e decidiu deixar o Brasil temporariamente.
Sua família teria sofrido pressões por parte de policiais suspeitos de envolvimento com a quadrilha.
O magistrado, responsável pela Operação Monte Carlo, que colocou na cadeia o bicheiro e expôs suas relações com parlamentares e governadores, é autor das autorizações para a gravação de comunicações dos suspeitos, cuja validade foi contestada na Justiça Federal em Brasília.
Na mesma edição, os jornais informam que o Tribunal Regional de Brasília rejeitou por dois votos a um o pedido de anulação das provas contra Cachoeira, medida que era defendida pelo relator do processo, o desembargador Tourinho Neto.
Além de votar pela anulação das provas, Tourinho Neto havia concedido habeas corpus para livrar o bicheiro da cadeia, mas os dois outros juízes do TRF votaram contra.
A renúncia do juiz federal em Goiânia demonstra que a organização chefiada por Carlos Cachoeira contaminou amplamente as instituições públicas em toda a região Centro-Oeste, chegando a influenciar decisões na capital federal.
Em ofício enviado ao corregedor da 10a. Vara Federal em Goiânia, o juiz Moreira Lima informa claramente que toma a decisão de se afastar do cargo porque sua família, em sua própria residência, foi procurada por policiais que queriam conversar sobre a Operação Monte Carlo, fato que ele considerou uma nítida ameaça.
O magistrado observa ainda que têm ocorrido crimes de homicídio, “provavelmente praticados a mando por réus do processo”, o que demonstra a periculosidade da quadrilha.
A contaminação do sistema judiciário e policial em Goiás por parte do crime organizado fica ainda mais evidente quando se noticia que o provável substituto do juiz Moreira Lima, Leão Aparecido Alves, terá que se declarar impedido, por ser notório amigo de um dos principais associados de Carlos Cachoeira, que também se encontra preso em Brasília.
A rotina das “chicanas”
Esse conjunto de notícias, publicado assim em meio ao relato mais ou menos burocrático das idas e vindas de processos, dissimula a real gravidade do contexto em que se desenrola o escândalo que tem entre seus personagens centrais o senador Demóstenes Torres.
O fato de um juiz federal se vir obrigado a deixar o cargo e viajar para fora do País, para salvaguardar a segurança de sua família, deveria mobilizar a imprensa no sentido de destrinchar de uma vez por todas a história do esquema montado pelo bicheiro Carlos Cachoeira a partir de Goiás.
Era o caso de os grandes jornais da região Sudeste montarem uma força-tarefa em Goiânia, para investigar e expor o esquema que começa com um bicheiro de província obcecado pela exploração de máquinas viciadas de jogo e termina influenciando a execução do orçamento federal.
Não é admissível, em qualquer hipótese, que o Brasil do século XXI continue permitindo que a ineficiência da Justiça estenda o tapete da impunidade que facilita a consolidação e a expansão de quadrilhas como essa, cujos integrantes são tão desqualificados que mal falam o próprio idioma.
Até nosso crime organizado é brega.
As gravações das conversas entre os delinquentes, que o juiz Tourinho Neto pretendeu eliminar do processo, demonstram claramente que se trata de bandidinhos de quinta categoria, que foram alçados a padrão de mafiosos internacionais pela fragilidade do sistema judiciário – que por sua vez é manietado pela profusão de recursos legais à disposição dos criminosos.
O processo originado pela operação Monte Carlo tem nada menos do que 81 réus. Somente o chefe, Carlos Cachoeira, escalou oito advogados, que se revezam na tarefa de manter o juiz ocupado, com recursos e petições sem fim, para atrapalhar o julgamento.
Todo réu deve ter direito a ampla defesa, mas a rotina dos advogados nesse e em muitos casos em que os acusados têm amplos recursos é a da “chicana”, das iniciativas de má fé, da litigância maliciosa.
E não sai uma linha sequer nos jornais sobre essa prática que na vida real anula a Justiça.
E não sai um comentário sequer da Ordem dos Advogados do Brasil, sempre tão ciosa em levantar suspeitas que apontem para longe de seu nicho corporativista.
O caso Cachoeira assusta não apenas pelo que revela sobre a fragilidade das instituições republicanas, mas principalmente pelo que esconde sobre a contaminação que coloca em risco a própria democracia.