Democracia torta
O noticiário sobre as campanhas eleitorais tem uma falha essencial: os jornais apenas repetem a agenda induzida pelos marqueteiros de campanha, e o máximo que acrescentam de iniciativa própria se refere às análises sobre resultados de pesquisas de intenção de voto.
Eventualmente, para colorir a cobertura, uma ou outra averiguação sobre declarações, promessas e acusações trocadas pelos concorrentes.
No caso da eleição na capital paulista, por exemplo, nesta semana destacou-se apenas a questão sobre o fim das escolas de tempo integral, que opôs os candidatos José Serra e Gabriel Chalita durante o debate da última segunda-feira, quando parte da imprensa, no dia seguinte, procurou esclarecer que nenhum dos dois tinha razão.
Praticamente não há referencias a possíveis compromissos dos postulantes com relação aos graves problemas da cidade.
Dessa forma, as eleições que vão definir os futuros dirigentes das capitais que congregam a maior parte da população do país – cujos resultados deverão influenciar fortemente a sucessão presidencial e as próximas eleições de governadores – são tratadas como uma disputa menor.
Tem mais valor para a imprensa, por exemplo, a troca de farpas entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a atual presidente, Dilma Rousseff.
Os jornais ignoram as conexões de alguns candidatos com setores da economia que costumam afetar a vida da cidade, como a indústria da construção civil, e demonstram pouco interesse na definição das capacitações reais de cada um diante do desafio de melhorar a qualidade de vida nas nossas cidades.
Por cima de toda essa superficialidade, porém, o mais grave é como os jornais tratam a disputa entre os candidatos a vereador.
O principal foco é sempre sobre os casos mais bizarros, o aspecto circense que essa eleição eventualmente adquire com a apresentação de candidatos que tentam chamar a atenção dos eleitores com apelidos ridículos ou propostas desvairadas.
Não se observa um esforço da imprensa para destacar o papel do legislador municipal, como se a Câmara fosse apenas isso mesmo, um circo onde os representantes do povo tratam de seus próprios interesses.
Entrevistas curtas com candidatos a vereador, como faz o Globo diariamente no Rio de Janeiro, permite apenas compor uma apresentação sumária de indivíduos, não um perfil político que ajudaria o eleitor a fazer suas escolhas.
Picadeiros da política
A depender do trabalho jornalístico, não há como distinguir na confusão de nomes, apelidos e números que se oferecem na propaganda do rádio e da TV, os aventureiros de sempre e os candidatos mais qualificados ou aqueles que já têm em sua biografia bons serviços prestados à sociedade.
Além disso, no sistema político brasileiro, a excessiva concentração de poderes em mãos do Executivo, em todas as instâncias, é um fator que precisa ser contrabalançado por uma atenção maior ao Legislativo.
Se a imprensa seguir cobrindo apenas o que fazem os prefeitos, governadores e os ocupantes da Presidência da República, o valor percebido dos legisladores tende a se desvanecer.
E as Câmaras Municipais seguirão sendo vistas como picadeiros da política.
Os grandes jornais consideram menor a política local, como se fosse possível ignorar que é nas Câmaras Municipais que se produzem as regras de convivência nas cidades, onde se constroem ou não as condições objetivas para a qualidade de vida da população.
Aceitar indiferentemente que os partidos lancem “qualquer um” como candidato a vereador, de olho apenas no potencial das “marcas” individuais para compor uma bancada mais alentada, equivale a estimular a prática do fisiologismo, que está sempre na origem dos grandes esquemas de corrupção.
Assim, de nada adianta a imprensa atacar os problemas nacionais “por cima”, quando eles se revelam nas grandes estruturas, se continua ignorando os esquemas originais, que se articulam no nível municipal.
Nas Câmaras Municipais nascem os sistemas de trocas de favores e são forjadas as carreiras de políticos corruptos que, galgando a escala das instâncias de poder, acabam em Brasília.
Ao se omitir de seu dever de fiscalizar o poder corrompido em sua nascente, a imprensa contribui para essa evolução invertida do ideal democrático.
Da mesma forma com que fazem vistas grossas para esse processo, os jornais também deixam de informar o eleitor sobre as candidaturas de cidadãos mais qualificados e verdadeiramente engajados em movimentos pela melhoria das condições de vida nas cidades.
Misturados à maçaroca dos oportunistas, acabam sendo ignorados pelo eleitor justamente aqueles que poderiam fazer a diferença.