Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Questões preocupantes na cobertura do acidente

Desde sábado 30/9, não durmo direito. Nem minha mãe. Pouco tempo antes do acidente da sexta-feira, ela e meu pai viajaram no vôo 1907 da Gol, de Manaus para o Rio. Nossa família é originalmente de Manaus e meus pais foram obrigados a ir até lá para resolver assuntos particulares. Iam ficar mais tempo, mas adiantaram a volta porque receberiam hóspedes em casa, no Rio. Não fosse por isso, talvez estivessem nesse vôo fatídico. Assim como o restante do país, ficamos comovidos. Porém, ainda mais preocupados. Pois certamente necessitaremos voltar a Manaus no futuro. E em nenhum momento nenhum de nós consegue pensar: “Ainda bem que não foi conosco”. A gente só pensa: “Pode ser conosco a qualquer momento”. Descrevo abaixo o porquê.

Na medida do possível, tenho acompanhado a cobertura da imprensa sobre o caso e a cada dia fico ainda mais preocupada. Informações contraditórias, pouca ou nenhuma informação sobre procedimentos internacionais de investigação de acidentes aéreos, comunicados oficiais cheios de lacunas por parte dos representantes do governo e, ao fim, resta-nos torcer (ou rezar, dependendo do caso) quando formos passageiros de um vôo no trajeto de Manaus para não sucumbirmos no tal “buraco negro”.

Só para recapitular algumas frases e trechos de reportagens:

Globo Online, 5/10 (chamada de matéria):

“Aeronáutica não acredita em falha do controle aéreo”

Título e trecho da mesma matéria:

“Vôo 1907: erro do controle aéreo é descartado”

“Os registros mostram que os controladores tentaram se comunicar diversas vezes com o Legacy quando este se encontrava na área em que ocorreu o acidente, mas não houve resposta – o transponder, um equipamento de segurança e comunicação com as torres de tráfego, deveria estar desligado ou os pilotos, fora da cabine. Como o transponder estava ligado quando o Legacy decolou e quando pousou, a Aeronáutica não acredita em pane do equipamento.”

Ainda no mesmo dia foi acrescentado:

“Vôo 1907: controle tentou se comunicar com Legacy

Análise de conversas mostra controladores buscando contatar piloto várias vezes, pouco antes do choque com o avião da Gol. Ele pode ter saído da cabine.”

No mesmo jornal:

“Ministro da Defesa critica jornalista que estava no Legacy

Publicada em 4/10/2006 às 16h11m / Maria Lima – O Globo/Jornal Hoje

Nova York e Brasília – O ministro da Defesa, Waldir Pires, repudiou nesta quarta-feira as declarações do jornalista americano Joe Sharkey, que estava no jato Legacy 600, que se chocou na última sexta-feira com um Boeing da Gol, e teria dito que o tráfego aéreo brasileiro é perigoso. Segundo o repórter, os pilotos americanos Joseph Lepore e Jean Palladino agiram como heróis.

– É lamentável que alguém faça uma declaração dessa natureza lá fora – afirmou o ministro.”

Destaco agora a seguinte afirmativa:

“Para o ministro, o Brasil tem os mesmos perigos aéreos que em qualquer parte do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Segundo ele, ainda não há nenhuma culpa atribuída a ninguém durante as investigações preliminares.”

Reza

O que parece, lendo-se apenas O Globo, é que as investigações foram numa espécie de direcionamento para o foco e causa principal do problema: o piloto do Legacy. Primeiro, não ocorreu falha no controle aéreo. Isso de acordo com o porta-voz oficial da instituição que, em última instância, é responsável pelo controle aéreo do país e está dentro da estrutura da investigação. Depois, suspeitou-se que o piloto havia desligado um aparelho de comunicação do Legacy e, finalmente, foi confirmado que a torre se comunicou com o Legacy diversas vezes e não houve resposta do piloto porque: 1) Ou ele desligou o equipamento por não desejar ser importunado enquanto voava em altura não permitida; 2) Ou ele não estava na cabine no momento dos contatos; 3) Ou ele baixou o volume do rádio.

Ora, diante destes fatos, eu, como leitora e eventual passageira de aviões no Brasil, concluo o seguinte: temos, segundo o nosso ministro da Defesa, os mesmos perigos aéreos que em qualquer parte do mundo (não vi nenhum repórter entrevistar alguma autoridade estrangeira, por exemplo, de reconhecida competência técnica, que possa nos afirmar a mesma coisa, então tenho que acreditar que o ministro está falando a absoluta verdade, com conhecimento de causa, sem precisar citar estatísticas, números de acidentes causados por falha nos sistemas de controle etc.)

Pois bem, se um piloto aloprado (para usar uma expressão da moda) resolve baixar o volume do rádio ou ir ao toalete no momento em que voa em altura proibida, ou mesmo, resolve atingir um avião com 154 pessoas a bordo deliberadamente (o que, certamente, não foi o caso), não há nada a se fazer, porque esse avião vai cair mesmo e as 154 pessoas a bordo vão morrer mesmo. Então, aos futuros passageiros deste e de outros vôos do espaço aéreo brasileiro só resta rezar para não cruzar em sua aerovia com um “piloto aloprado”.

Lacunas

Porém, duas reportagens já me deram mais esperança de algo pode acontecer na cobertura do caso (porque é da imprensa que eu estou falando, não do ministro, pois, ao que parece, este último está cumprindo bem o seu papel). Uma é do Estadão Online, 4 de outubro de 2006 – 16h59:

“Parentes terão reunião com Associação de Vítimas de Acidentes Aéreos

Um dos integrantes da comissão afirmou que será discutida a possibilidade de se exigir que uma comissão independente internacional acompanhe as investigações

Lígia Formenti

Brasília – A comissão de familiares dos passageiros que estavam a bordo do Boeing 737-800 da Gol que caiu sexta-feira na Serra do Cachimbo, matando 155 pessoas, deverá se reunir ainda nesta quarta-feira, 4, com representantes da Associação de Vítimas de Acidentes Aéreos. O empresário Mauro Calais Siqueira, um dos integrantes da comissão, afirmou que principal questão que será abordada é a possibilidade de se exigir que uma comissão independente internacional acompanhe as investigações do acidente. Este pedido já havia sido feito segunda-feira para o ministro da Defesa, Waldir Pires. “Queremos saber se isso já foi feito antes, quais os passos que devem ser seguidos”, afirmou Siqueira.

O encontro deverá ocorrer no hotel onde parte dos familiares das vítimas do avião da Gol está hospedada. O empresário, irmão do passageiro Plínio Siqueira, disse não estar convicto de que a investigação comandada por brasileiros é isenta. “Há sempre um filtro político na divulgação das informações. Isso nos deixa preocupado”. Siqueira explicou que o encontro foi marcado a pedido dos próprios familiares. “Nossa intenção é trocar experiências, saber quais foram os erros, os acertos de pessoas que já passaram por uma situação como a nossa”, disse.

Um dos fatos que mais incomodaram a comissão foi a forma como os dados são divulgados. “Soube que a caixa-preta havia sido encontrada. Mas havia recomendação que somente um militar de alta patente deveria fazer o comunicado oficial”, disse. De acordo com a comissão, a previsão era a de que ainda nesta quarta 34 corpos encontrados seriam levados para a base instalada na Serra do Cachimbo. Ainda não havia confirmação se os corpos seriam trazidos hoje mesmo para Brasília.”

Os familiares das vítimas, que constituíram uma comissão afirmam que a divulgação das informações passa sempre por um filtro político. Ora, se é assim, eles desejam constituir uma comissão independente internacional que participe das investigações. Pedido este feito na segunda-feira ao ministro da defesa, ainda segundo o familiar da vítima.

E, por fim, da Folha, destaco, em particular, a reportagem de 4/10 intitulada “Leia perguntas sobre acidente aéreo que seguem sem resposta”. O jornal enumera brilhantemente diversas lacunas existentes nas declarações oficiais em nove perguntas, às quais, eu acrescentaria outras:

Certezas

Se a torre tentou se comunicar com o Legacy e não conseguiu porque o piloto talvez tenha diminuído propositadamente o volume do rádio, a torre se comunicou também com o avião da Gol? E se não o fez porque “isso não é o procedimento”, por que não seria um procedimento, uma vez que não obteve resposta do Legacy? Mil pés de altura equivalem a aproximadamente 300 metros. Mesmo considerada uma altura mínima aceitável pela legislação internacional, é aceitável que numa região onde sabidamente existe um “buraco negro” (o que eu não sei se existe, por exemplo, no espaço aéreo americano, embora o nosso ministro da Defesa tenha afirmado que temos o mesmo nível de segurança deles) tenha planos de vôos aprovados com essa diferença mínima? É aceitável que uma região onde sabidamente existe um buraco negro de comunicação tenha dois aviões em sentidos opostos, voando a 800 quilômetros por hora cada, separados por 300 metros? Será que a palavra “mil”, acompanhada da palavra “pés” (medida não utilizada na vida comum) confundiu a imprensa, que não mediu com a ajuda de sua própria percepção o que são 300 metros de diferença entre dois aeroplanos a 800 km/h? Qual é a medida adotada em outros países no mesmo tipo de vôo? É esta mesma? E essa medida vale para regiões onde existem “buracos negros” de comunicação?

Bom, em resumo, acho que o papel da imprensa nesse momento é fundamental, no sentido de fazer perguntas precisas, questionar lacunas, dar voz a especialistas que estejam fora do sistema de controle nacional e, sobretudo, dar o mesmo espaço aos parentes das vítimas que clamam de modo justo pela criação de uma comissão livre internacional para participar da investigação. E, finalmente, aos acusados (embora não oficialmente, mas já pela imprensa) – os pilotos americanos.

Até porque as vítimas do acidente não poderão se acidentar novamente. Mas nós, sim. E, no fundo, é isso que a comissão de parentes, a opinião pública e a imprensa devem exigir: a certeza de que o nosso espaço aéreo seja de fato seguro.

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Jornalista, Rio de Janeiro