A regra simplificada – e falsa – do jornalismo é aquela que tenta separar as notícias das opiniões. É uma regra hipócrita, jamais respeitada por um bom jornalista, que entende que só poderá fazer carreira por suas opiniões e não por notícias mais ou menos iguais escritas por todos.
Esse medíocre sistema de trabalhar deve-se a alguns fatores: falta de bons pauteiros, informatização dos jornais, a quase extinção do copidesque e, acima de tudo, à preguiça do profissional.
Por isso, chama a atenção alguém que ainda faz um jornalismo investigativo honesto e correto, que faz um jornalismo heróico não temendo travestir-se em vítima de um drama coletivo que assola a desenvolvida e civilizada Itália. Refiro-me a Fabricio Gatti, que escreveu para a revista L’espresso a inacreditável reportagem “Io, schiavo in Puglia” (Eu, escravo na Puglia).
Antes de ir em frente gostaria de contar algo que me aconteceu em 1993. Não tinha ainda mudado para a Itália e fiz uma viagem de turismo ao meu país de nascimento, de onde saíra em 1946 e jamais voltara. Fui até a cidade de Foggia, na região da Puglia, de onde provinha minha mãe e sua família materna. Todos vieram conhecer o primo brasiliano.
Um dos parentes me chamou a atenção, parecia ter saído de um filme de Francis Ford Coppola: estatura mediana, mais para gordo, bigode tratado, terno de alfaiate, anel de ouro com um grande brilhante, gomalina nos cabelos e um charuto permanente preso entre os dentes. Convidou-me para jantar em sua casa, sua atividade era a produção e o mercado atacadista de tomates e outras verduras.
Durante minha visita aconteceu algo curioso: a empregada, trazendo um telefone sem fio, informou que o estavam chamando da Alemanha. Ele não falava italiano, tão-somente o dialeto local que eu por acaso entendo das lembranças de minha infância, pois minha bisavó também só falava esse dialeto. Ele pegou o telefone e falou uns cinco minutos, em dialeto. Quando desligou, perguntei se a pessoa com falara era alemã. Diante da afirmativa, continuei: “E você, falou em dialeto?” Tirando a charuto da boca, com um largo gesto, finalizou: “Ele me entende”.
Quando voltei para a Itália em definitivo, soube que ele tinha morrido e fiquei sabendo mais ainda: era membro da “Sacra Corona Unita”.
Trabalhador braçal
A Máfia da Sicília, é mais conhecida das organizações criminosas italianas. Espalhou-se pelo mundo e seu nome, por antonomásia, passou a significar qualquer tipo de grupo formado para delinqüir . Porém, divididas pelas regiões italianas existem outros sociedades.
“Ndrangheta”, na Calábria (ver “A imprensa e crime organizado”) é bem presente no Brasil, trazida pelos calabreses que moravam no Brás (SP) e até hoje tem o domínio na distribuição e venda de periódicos, e ainda de parte do atacado de verduras e peixe.
A “Camorra”, na Campânia (Nápoles), desta surgiu a “Sacra Corona Unita” (na Puglia) com o nome inicial de “Nuova Camorra Puglise”, que em 1981 tornou independente da “Camorra”.
Todas, além do crime, têm em comum a omertà, a lei do silêncio, pela qual se fala nada sobre o autor de um delito a fim que este não seja atingido pela justiça, mas somente pela vingança do ofendido. Todas tem o vício doentio do poder, do mando ou, como dizem os sicilianos, dialetalmente: “cumanà è médio che futere” (mandar é melhor que fazer amor).
Foi exatamente no centro da “Sacra Corona” que Gatti se infiltrou como trabalhador braçal, para fazer uma reportagem. Trata-se de que se chama na Puglia o “triângulo do tomate”, que tem por centro a cidade de Foggia e as outras que constituem a província homônima.
Sem aparecer
Agora é a estação do ouro vermelho: a colheita de tomates. A província é o reservatório de quase todas as indústrias de transformação. Os tomates partem do também chamado “triângulo dos escravos” e terminam nos pratos de toda a Itália e de grande parte de Europa. O problema está na mão-de-obra – devem ser uns 7 mil trabalhadores. Todos estrangeiros. Todos explorados em um emprego ilegal. Romenos sem permissão de permanência, búlgaros, polacos e africanos da Nigéria, Niger, Mali, Burkina Faso, Uganda, Senegal, Sudão, Eritréia.
São humilhados logo na admissão. Aquele deseja trabalhar deve trazer para o chefe uma mulher – pode ser sua mulher, sua irmã ou uma filha – e, caso não traga, nada de trabalho. A segregação racial é rigorosa. Os romenos dormem com os romenos, os búlgaros com os búlgaros, os africanos com os africanos.
Para proteger seus negócios os agricultores e proprietários rurais criaram uma rede de violentos capatazes italianos, árabes e europeus do Oeste. Os trabalhadores são alojados em tocas perigosas, onde nem os cães vadios querem ir. Não têm água, nem luz, nem higiene. São obrigados a trabalhar durante a colheita, das 6 da manhã às 10 da noite. Os patrões pagam, quando querem ou o fazem, 20 euros por dia. Com essa carga horária, deveriam receber 75 euros.
Quem protesta é calado a golpes de porretes. Alguns se revoltam e vão se queixar à polícia, mas são presos e repatriados por permanência ilegal. Alguns fogem e, nesses casos, os capatazes lhes dão uma perseguição implacável, como a caça ao homem contada por Alan Parker no filme Mississipi burning (1988). Algumas vezes os fugitivos são mortos, seus corpos enterrados clandestinamente e tudo fica assim mesmo.
Foi nesse mundo que Grassi, arriscando-se, entrou para denunciar as cruéis e torpes violações dos direitos individuais que estão acontecendo no dito civilizado ocidente europeu. Presenciou e registrou fatos que nos envergonham de pertencer ao gênero humano.
Mesmo tendo sofrido uma semana inteira, em sua reportagem de capa e mais 8 páginas internas Fabrício Grassi evita ao máximo aparecer. Esses escravos do século 21 é que são os verdadeiros protagonistas da matéria. Até a fotografia em que ele aparece colhendo tomates e ilustra esse trabalho não tem legenda.
Caso o jornalista fosse estadunidense, por esse trabalho certamente seria um forte concorrente ao Prêmio Pulitzer.
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Jornalista