Dois e dois são cinco, disse o ministro Fulano de Tal. Quase todo mundo sabe que dois e dois não são cinco. É pequeno, portanto, o risco de levar o leitor a engolir uma falsidade. Nesse caso, citar Sua Excelência pode ser suficiente. Mas o leitor, ouvinte ou telespectador nem sempre conhece ou recorda a informação necessária para avaliar uma declaração. Que fazer, nesse caso?
Na quinta-feira (5/10), o ministro da Fazenda Guido Mantega usou uma gracinha para justificar a liberação de 1,5 bilhão de reais, no dia anterior, para gastos diversos. O governo, segundo ele, não poderia parar por causa das eleições. “Vocês acham”, perguntou aos jornalistas, “que a gente não devia liberar recursos para a gripe aviária?” E pouco depois: “Não dá para dizer: pássaros infectados, não venham para o Brasil porque estamos em processo eleitoral”.
No começo da noite, a declaração foi reproduzida em jornais de rádio, sem comentários. No dia seguinte, apareceu em letra de forma, qualificada apenas como argumento irônico. Nenhuma das matérias mencionou três detalhes:
1. A medida provisória assinada pelo presidente, na quarta-feira (4/10), destinou à prevenção da gripe aviária R$ 146,3 milhões, menos de 10% dos gastos anunciados. Seria essa a grande justificativa para a liberação de verbas?;
2. Casos de gripe aviária haviam ocorrido na Europa Ocidental no começo do ano. Por que só agora saía o dinheiro?;
3. O pacote incluía um valor muito maior – R$ 226,8 milhões – para obras do Ministério dos Transportes.
Jornais haviam divulgado esses pormenores na manhã de quinta-feira. Horas mais tarde, repórteres e editores acataram as declarações do ministro como se nenhum daqueles dados fosse conhecido. A maior parte dos leitores poderia não ser capaz de juntar as informações no dia seguinte. Não se espera que mantenham vivos, na memória, tantos detalhes. Jornalistas, principalmente especializados, não têm justificativa para baixar a guarda.
Bola em jogo
Alguém poderia dizer que seria errado editorializar as matérias informativas. Mas isso não seria editorializar. Seria apenas acrescentar dados importantes para a avaliação das palavras do ministro. Além disso, todos os jornais, na edição de quinta-feira, tinham levantado suspeitas, nas páginas de noticiário, sobre a motivação do pacote.
A continuação do noticiário, na quinta e na sexta, mostra um espantoso contraste. Num dia, o material é crítico, no melhor sentido. No dia seguinte, volta à rotina da mera reprodução de declarações e de relatórios.
Jornalismo crítico, ao contrário do que parecem supor alguns profissionais, não é jornalismo do contra, movido por mau humor permanente. É apenas trabalho criterioso, que envolve atenção aos detalhes e à seqüência dos fatos. Quando, por exemplo, o ministro da Fazenda afirma numa entrevista que a política monetária, no caso de um segundo mandato, será mais flexível, que diabo quer ele dizer?
Pretende afirmar que o Executivo imporá ao Banco Central um padrão diferente do seguido nos últimos anos? Nesse caso, como ficará o Comitê de Política Monetária? Ou pretende apenas dizer que haverá menos arrocho, porque a inflação é mais baixa? Mas, nesta hipótese, a política não será mais flexível: será apenas ajustada a novas condições.
O repórter pode não ter presença de espírito, no decorrer da entrevista, para rebater a bola com prontidão. Os melhores profissionais são sujeitos a falhas desse tipo. Todo repórter experiente deve ter lamentado, alguma vez, a pergunta que faltou. Mas editores devem ser capazes de levantar a bola, numa leitura atenta do material, e de repô-la em jogo. Não é o que normalmente se vê.
Perguntas sem respostas
Têm ocorrido lances criativos, mas a passividade continua a marcar o dia-a-dia do trabalho jornalístico. Outro exemplo expressivo é o noticiário sobre corrupção nas exportações. Na mesma quinta-feira (5/10), os jornais divulgaram a informação distribuída pela Transparência Internacional: os exportadores brasileiros estão entre os mais propensos ao suborno para fechar negócios. Numa lista de 30 países, o Brasil aparece em 23º lugar, seguido, em posição menos honrosa, por apenas sete países, todos emergentes ou em transição, como a China, a Índia e a Rússia.
O melhor tratamento do assunto foi o de uma emissora de rádio, que entrevistou o diretor da Transparência Brasil, Claudio Weber Abramo. O entrevistado mostrou que a relação divulgada é no mínimo estranha. Por que diabo a Arábia Saudita aparece em 22º lugar, ou os Emirados Árabes em 14º? Exportação de petróleo é seu principal negócio e petróleo é cotado em bolsas internacionais. Quem vive disso não precisa subornar os compradores, principalmente quando é alta a demanda global. Além disso, observou o entrevistado, a pesquisa registrou impressões dos pesquisados, sem mencionar acusações concretas ou queixas dirigidas ao governo brasileiro.
As matérias publicadas, no entanto, limitaram-se a reproduzir as declarações da diretora da Transparência Internacional para as Américas, Silke Pfeiffer. O governo brasileiro, segundo Pfeiffer, não tem conseguido que as empresas exportadoras obedeçam a lei quando fazem negócios no exterior. Tudo isso, segundo ela, reflete a elevada corrupção no país.
Um economista do setor financeiro, entrevistado num programa de TV, admitiu saber pouco sobre a pesquisa, mas arriscou-se a explicar a má colocação do Brasil, lembrando que as empresas brasileiras enfrentam custos muito altos e têm dificuldade para competir. Com esse comentário, ele colou um rótulo de desonestidade nas empresas brasileiras que exportam. E ficou tudo por isso mesmo.
Continuam valendo as perguntas: por que raio de necessidade os sauditas precisam subornar os importadores de petróleo? O governo brasileiro terá recebido alguma reclamação ou denúncia de empresas prejudicadas pela concorrência desleal das companhias brasileiras?
Talvez alguém se lembre de perguntar esses detalhes quando sair a próxima lista.
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Jornalista