Outra vez a Cracolândia
O anúncio de que o governo de São Paulo vai organizar mutirões para a internação forçada de dependentes de crack no centro da capital paulista mobiliza a imprensa e reabre debates sobre direitos individuais e os limites da ação do Estado.
Ao lembrar que a medida foi tomada pelo governador Geraldo Alckmin um dia após uma reportagem sobre o primeiro aniversário da operação policial que tentou desfazer as concentrações de viciados na região central da cidade, a Folha de S. Paulo insinua que o governo apenas se mobilizou em razão dessa cobrança.
No entanto, segundo o Estadão, foi a ação policial que impediu, no início do ano passado, a adoção de um programa de internações involuntárias e compulsórias que vinha sendo preparado por juristas e especialistas em saúde.
Se a decisão foi tomada pelo governador apenas em função da reportagem da Folha, na qual se demonstrou que, passado um ano, a ruidosa operação policial apenas agravou a situação dos dependentes que se reúnem na chamada “Cracolândia”, os jornais precisam aprofundar a discussão.
A prática usual é penas publicar dois textos curtos de especialistas, um contra e outro a favor, o que claramente não oferece elementos suficientes para a formação de opiniões consistentes.
Como sempre, as convicções irão se acumular entre os defensores de mais ação por parte do Estado e aqueles que acusam o governo de realizar programas de higienização social com o objetivo de conter a degradação de áreas urbanas valiosas.
O Globo lembra, na edição desta sexta-feira (04/01), que a prefeitura do Rio tentou levar adiante uma operação semelhante, no ano passado, anunciando a internação compulsória de adultos usuários de drogas nas ruas da cidade, mas a polêmica acabou reduzindo o alcance do projeto.
Por esse motivo, o procedimento passou a ser adotado apenas com crianças e adolescentes e, durante todo o ano, a Justiça autorizou o recolhimento de apenas uma pessoa adulta, uma jovem de 22 anos, grávida de oito meses, que foi encaminhada para internação em função do risco que representava para ela e o bebê a permanência entre viciados e traficantes.
Identificar os investidores
Pode ser que o anúncio do programa de internações tenha sido antecipado pelo governador Geraldo Alckmin em função da cobrança feita pela Folha de S. Paulo, mas as reportagens desta sexta-feira (04/01) em geral dão conta de uma ação relativamente planejada.
Segundo o governador, a decisão de internar ou liberar será tomada caso a caso, com a participação de pelo menos um psiquiatra, um promotor, um juiz e um advogado representando a OAB.
A retirada do paciente das ruas poderá ser feita por recomendação de agentes do Estado ou a pedido de familiares, e o projeto parece dar sequência a um estudo feito no final de 2011 pelo desembargador Antônio Carlos Malheiros, titular da Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça.
Não há, portanto, indícios de uma ação precipitada do governador Alckmin, como afirma a Folha de S. Paulo.
No entanto, é importante que a imprensa acompanhe o início da aplicação do programa, anunciado para a próxima semana.
O Brasil vem sendo acusado, em foros internacionais de saúde pública, de não dar ao problema do crack a atenção necessária.
A dependência desse tipo de droga costuma produzir efeitos desastrosos em grupos sociais vulneráveis, como moradores de rua, desempregados e jovens com problemas de relacionamento familiar.
Já em 2009, a ONU havia alertado que o uso dessa droga estava se tornando um caso grave no Brasil.
No entanto, é preciso acrescentar aos debates, centrados na questão da saúde pública e nos danos causados pelas concentrações do tipo “Cracolândia” na degradação urbana, também o desafio de identificar e punir os financiadores do tráfico.
Há cinco anos, quando o problema chamou a atenção da ONU, o crack já movimentava cerca de US$ 100 bilhões por ano em todo o mundo e no Brasil já havia 2 milhões de usuários.
Normalmente, quando a questão das drogas é tratada pela imprensa, o foco é dado exclusivamente no traficante. No caso do crack, a atenção é também para os usuários, porque a concentração deles nas grandes cidades incomoda a sociedade.
Mas pouco se irá avançar se as autoridades e a imprensa continuarem ignorando os grandes investidores por trás desse negócio.