Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ufanismo desmedido por sistema inseguro

Importantes os assuntos tratados por Pedro Doria em sua coluna no caderno “Link” do Estado de S.Paulo (2/10/2006). A assertiva principal: as urnas eletrônicas empregadas nas eleições brasileiras não são nada seguras, é infundado confiar nelas. Ele relata o caso da eleição no Distrito Federal em 2002: oito em cada nove urnas foram incapazes de realizar autotestes de maneira correta; sete em cada oito não emitiram boletins de forma adequada e isenta de erros; dezenove em cada quarenta (praticamente a metade) falharam em imprimir o documento – que deveriam produzir antes de serem abertas – atestando que estavam zeradas, sem qualquer voto prévio. Isto num universo de 1.153 urnas no total, número suficiente para o caso ser considerado relevante. Esses dados são oficiais. Os sistemas de segurança falharam, os resultados das eleições não são merecedores de credibilidade, o sistema eleitoral eletrônico é fraudável. No entanto, apesar disso, o TSE e os tribunais eleitorais regionais afirmam que as urnas são seguras.

O parâmetro do autor: não se trata meramente de falhas na tecnologia daquelas máquinas usadas como urnas naquela vez, como se novas máquinas pudessem ser à prova de falhas. Sistemas eletrônicos como o dessas urnas simplesmente não são confiáveis, “segurança digital é uma contradição em termos”.

Ele ressalta o óbvio: países onde o avanço tecnológico é muito anterior e a população é muito mais familiarizada com a tecnologia de informação – o autor lembra países europeus e os Estados Unidos, mas também vale para o Japão e a Coréia do Sul; cabe lembrar, o Japão tem telefonia celular desde a segunda metade da década de 70 e o consumo de tecnologia de informação de última geração lá é incomparavelmente maior – simplesmente desconsideram liminarmente o uso de urnas eletrônicas, vendo com total desconfiança o sistema eleitoral digital. De fato, somente a Venezuela teria mostrado interesse em adotar as urnas eletrônicas como no Brasil. Parece que só um ufanismo completamente desmedido explica que, no Brasil, se acredite na confiabilidade do tal sistema.

Plebiscito ou referendo

Doria aponta ainda outro problema importante: os jornalistas políticos que conhecem esses elementos os ignoram porque preferem crer no contrário do que os dados mostram de maneira cristalina.

Cabe, assim, à imprensa uma matéria investigativa dupla. Primeiro, referente à confiabilidade, ou não, do sistema eleitoral eletrônico e sobre o discurso do TSE: afinal, segundo Doria, os próprios dados do sistema eleitoral eletrônico evidenciam, inequivocamente, a falta de segurança; se é assim, e o TSE sabe, então o TSE deve informações e explicações aos cidadãos. Segundo, a matéria deve tratar dos jornalistas políticos: confrontá-los sobre o que eles sabem e inquiri-los sobre o papel do jornalismo político – eles não teriam cumprido o papel de informar os cidadãos.

Talvez, à luz desses elementos, se devesse fazer um plebiscito, ou um referendo, consultando os cidadãos – já devidamente informados sobre a questão, sobre os prós e os contra do sistema eletrônico – se eles querem, ou não, as eleições digitais – mas a consulta seria feita em urnas… manuais? Alguns – ou muitos – contestariam alegando que uma consulta como essa é muito cara em termos econômicos – mas os princípios democráticos são mais importantes do que o custo econômico da consulta, devendo, assim, prevalecerem os parâmetros e os procedimentos democráticos.

Cidadãos manipulados

Não se trata, evidentemente, de acusar o TSE de autoritarismo mal-intencionado; longe disso: não se trata, aqui, de apontar uma suposta teoria da conspiração. A tradição paternalista (intrinsecamente autoritária) está tão entranhada que neste caso certamente apenas se procurou tomar a decisão certa no lugar da população, pela população. O princípio antidemocrático: os cidadãos não são capazes de serem devidamente informados e, então, tomarem a decisão correta. O pressuposto autoritário: existe uma decisão correta anterior à eventual escolha da população e cabe a eles, os iluminados, tomarem essa decisão correta.

Em contrapartida, na concepção efetivamente democrática, não existe decisão correta anterior à escolha da população. Na democracia – nunca custa repetir, a melhor decisão é aquela que o conjunto dos cidadãos tomam (e já vou antecipadamente ressaltando que não há erro de concordância gramatical como muitos gostariam, erroneamente, de apontar). Na concepção efetivamente democrática, a democracia não é o consenso, o fim do conflito, mas é a melhor maneira de lidar com o conflito.

No caso da adoção do sistema eleitoral digital, os cidadãos foram manipulados, induzidos a acreditar cegamente na segurança das urnas eletrônicas, desprovidos do direito de serem devidamente informados e de fazerem sua escolha – com a devida conivência do desserviço prestado à população pelo jornalismo.

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Historiador, doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP