Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A TV digital, o dossiê e as eleições

No início do processo de definições acerca da TV digital, o principal argumento da Globo para acelerar a decisão do governo era a ‘pressa’. Segundo seus executivos e lobistas, as emissoras de televisão aberta estariam ‘ficando para trás’ em relação às outras mídias, já digitalizadas. Não havia qualquer estudo que apontasse a perda de faturamento caso a digitalização fosse postergada em alguns meses, até porque, defendia a Abert (Associação e Emissoras de Rádio e Televisão), o modelo de negócios manter-se-ia – com a publicidade sendo a maior fonte de receitas das empresas. Mesmo sem justificativas aceitáveis, era preciso correr.


Atendendo a pedidos, foi exatamente isso que o governo fez: correndo contra o relógio, açodou o debate público e fez o que a Globo queria, escolhendo o ISDB (padrão japonês) e entregando outra fatia de 6 MHz às atuais concessionárias, aumentando a concentração dos meios e impedindo o ingresso de novos programadores. Antes disso, em plena crise do mensalão, nomeou um histórico lobista da Globo para ser o ministro das Comunicações, algo que nem tucanos tiveram coragem de fazer.


Agora que a decisão foi tomada, a pressa parece ter sido substituída pela prudência. Segundo a emissora, as transmissões digitais devem ser iniciadas só no fim de 2007 ou mesmo em 2008, devido à ‘dificuldade de definir os requisitos técnicos do SBTVD e ao atraso na divulgação do cronograma de implantação da TV Digital’.


A pressa, por certo – e isso qualquer um sabia – estava em aproveitar o momento eleitoral para fazer o governo ficar de joelhos. Afinal, se o poder da emissora é enorme a qualquer tempo, a aproximação das eleições multiplica exponencialmente sua capacidade de barganha.


Mas, passado o primeiro turno das eleições, em que a Globo fez parte da orquestração, às vésperas da eleição, para esconder as verdadeiras intenções de quem divulgou a foto do dinheiro que seria supostamente usado para a compra do dossiê contra José Serra [ver ‘Globo silencia diante do crime do vazamento das fotos do dinheiro‘], uma pergunta deve ser feita, ou refeita: o governo fez mesmo um acordo com a emissora, para, em troca das decisões sobre a TV digital, contar com uma cobertura favorável, ou pelo menos equilibrada, do processo eleitoral?


Os limites da aliança


Quem acompanhou o noticiário da emissora semana passada, estarreceu-se com a campanha da Globo contra Lula e o PT, omitindo informações e supervalorizando outras, notadamente as que corroboravam a versão dos fatos que apontava o Partido dos Trabalhadores, genericamente, como uma quadrilha.


Dados estes fatos – e a indagação sobre a possibilidade de um acordo entre governo e TV Globo, à semelhança de governos anteriores – restam quatro possibilidades:


1. O governo fez mesmo um acordo com a emissora, como tudo indica, e esperava em troca contar com uma cobertura equilibrada das eleições. Entretanto, quando viu a oportunidade de mandar o PT para casa e colocar no Planalto a trupe alinhada ideologicamente ao falecido patriarca, os Marinho aproveitaram a chance e mandaram o acordo às favas.


2. O governo não fez acordo nenhum, mas atendeu aos desejos da emissora por acreditar que isso mostraria uma ‘boa vontade’ de Lula com a Globo que, conseqüentemente, teria a complacência de seu departamento de jornalismo durante as eleições, que pelo menos ‘não atrapalharia’ sua reeleição.


3. O governo fez o que fez tendo como único princípio a idéia de que sua decisão era mesmo a melhor para o Brasil. Esta, evidentemente, é a hipótese menos provável, já que ninguém no próprio PT é capaz de defender a decisão do governo.


4. Houve um acordo tácito, como na primeira opção, mas que a realidade transforma em um jogo de ‘morde e assopra’. Como ainda restam decisões importantes em relação às especificações técnicas da TV digital e outras questões de regulação, a Globo aproveitou a onda das denúncias para mandar um recado ao governo, que poderia ser traduzido mais ou menos assim: ‘Vocês viram o que nós fizemos no primeiro turno. Se não correrem com as coisas que nos interessam, podemos criar problemas para o presidente se reeleger, especialmente porque a turma de vocês está vindo com essa de uma Lei Geral de Comunicações etc, etc.’.


Independente da resposta, o fato é que Lula, uma vez mais, colheu aquilo que plantou. No início de seu mandato, por força da concentração dos meios de comunicação na mão de poucos empresários alinhados ideologicamente à dupla PSDB-PFL, abandonou o projeto da Ancinav. Em seguida, quando Waldomiro Diniz foi flagrado fazendo que não devia, enfrentou uma avalanche midiática conservadora, que enfraqueceu substancialmente seu governo. Mais para frente, viu a casa ruir com a deflagração da crise do famigerado mensalão, que foi multiplicada e ditada pela imprensa de direita. Nem Palocci sobreviveu à força da notícia-propaganda dos veículos de comunicação privados. Lula só contou com a complacência da mídia de direita quando levou a cabo as reformas conservadoras.


Pouco nobre


Nesse meio tempo, apesar do discurso de alguns de seus integrantes, o governo, refém da mídia, não encarou o campo da comunicação como fundamental para um projeto transformador. Pelo contrário, fez questão de manter tudo como está, inclusive ganhando o título de maior repressor de rádios comunitárias da história do Brasil. Todas as iniciativas democratizantes foram tratadas pelo núcleo governamental como periféricas. Em uma ilusão infantil, Lula achou que poderia usar a concentração dos meios a seu favor.


O resumo da ópera é bastante simples, e se divide em três partes:


1. Lula achou que poderia superar crise após crise sem democratizar a mídia. Esqueceu-se que a mídia privada é oligárquica: não importa se o governo foi mais conservador do que esperavam todos. Os Civita, os Frias, os Mesquita e companhia, não suportam a idéia do PT ser governo. Nunca suportarão. Eles têm partido, têm firme posição política e, por isso, serão antipetistas hoje, amanhã e sempre. É inútil, por isso, afirmar que ‘os jornais foram sujos, antiéticos’ ou coisas do gênero. O problema, evidentemente, é a concentração mantenedora do pensamento único, a falta de pluralidade e diversidade, a ausência de uma mídia de esquerda que faça o contraponto à mídia de direita e um sistema público de comunicações forte.


2. Lula achou que, mesmo com a mídia impressa jogando contra, poderia fazer ‘acordos’ com a Globo e, com isso, teria a vitória garantida, já que seu governo é evidentemente melhor que o de FHC, em quase todos os sentidos (na comunicação, assemelha-se). Esqueceu-se o presidente que empresas são empresas, e que a traição está em sua natureza. Afinal, o capital não é fiel a ninguém, a não ser a ele mesmo. E, além disso, ao contrário do que podem pensar, o capital tem sim ideologia.


E se, de um lado, Lula não enfrentou um dos maiores problemas brasileiros, que é a concentração da mídia – problema este que ficava evidente a cada crise enfrentada por seu governo –, de outro tentou jogar o jogo de uma política pouco nobre, que se resume basicamente a atender interesses privados para receber algo em troca. Ou seja, após quatro anos anabolizando o monstro da mídia conservadora, agora terá que enfrentá-lo.


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Na esperança de que haja uma revisão do rumo das políticas de comunicação em seu segundo mandato, a quase totalidade dos membros das organizações e movimentos que lutam pela democratização das comunicações hoje declaram firmemente a necessidade de evitar a vitória de Geraldo Alckmin. Sabem que, com Lula e o PT é difícil caminhar rumo a um ambiente mais democrático no campo das comunicações. Já com a direita, é impossível. E por uma razão muito simples: foi ela, a aliança conservadora hoje encarnada na dupla PSDB-PFL, quem construiu o modelo atual.

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Jornalista, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social