Seja qual for o resultado das eleições presidenciais, é bom que os brasileiros releiam o livro E o vento levou, de Margareth Mitchell. Ou dêem um jeito de assistir ao DVD do filme homônimo, pois o debate havido entre Geraldo Alckmin e Luiz Inácio Lula da Silva no domingo (8/9) mostrou os dois Brasis de que tanto falam conhecidos sociólogos. Com uma diferença: agora o conflito está posto!
Até agora, um dos Brasis submetia-se ou era submetido ao outro, com leves intervalos de governos interessados no que se convencionou chamar de nacional.
Naturalmente o presidente Lula exagerou ao dizer no debate, dirigindo-se a Alckmin, “vocês governam este país há 400 anos”, e ouvir do oponente que o PSDB não existe há tanto tempo. Mas o que ele tem em mente quando diz e repete seus sofismas é que representa um presidente diferente de todos quantos governaram o Brasil, por se achar o que mais deu atenção aos pobres. Esquece-se de Getúlio Vargas, de João Goulart, de Juscelino Kubitscheck e até da ditadura militar, que complicou a Previdência ao criar aposentadorias para quem jamais contribuiu.
Esquece-se também de que algumas redes de proteção social que manteve e aperfeiçoou foram criadas pelo antecessor, um verdadeiro carma do atual presidente, uma alma penada que está sempre sendo invocada para ser detratada nas comparações. Lula não parece que disputa com Alckmin, e, sim, com FHC.
Bons negócios, sempre
Mas que foi o debate? Um festival de surpresas. Primeiro, a repetência do mesmo erro do presidente Lula, que consiste na arrogância de supor que, seja qual for a situação, não há adversário para ele.
Proclamou, sem meias palavras, que liquidaria a eleição no primeiro turno. Por isso, fugiu ao debate no primeiro turno. Encontrou em Alckmin um adversário ousado, bem preparado, pronto para o embate. Era nítida a surpresa que teve logo no primeiro bloco. Chegou a dizer depois “você não é assim, Alckmin, eu te conheço”. Se não era, tornou-se, mudou, ficou sendo.
O segundo erro diz respeito à mídia. O presidente Lula e setores infelizmente dominantes no PT vêem a imprensa como linha auxiliar do governo ou da oposição, desde que sejam eles que estejam na oposição. Tratam expoentes da intelligentsia brasileira como se todos fossem incapazes de ter idéias próprias, de fazer escolhas – em resumo, de pensar.
Ora, por mais que hortaliças infestem todas as instâncias da vida nacional, inclusive nas universidades, há aqueles que não aceitam ser áulicos, que se recusam a dizer que o seu guia é um ágrafo que, no convívio de tantas décadas com as normas da língua culta, não conseguiu ainda assimilá-las, apesar de ver proclamada todos os dias a sua inteligência.
Lula, ao olhar insuspeito, não dá mostras de inteligência, mas de esperteza. Por enquanto tem tido mais sorte do que juízo. Seu governo não é uno: inteligências deslumbrantes misturam-se a conhecidos puxa-sacos que louvariam o chefe, qualquer que fosse ele, e alguns deles já deram mostras de que louvam também ditadores, a quem serviram e de quem se livraram na hora certa.
O presidente acha que pode governar um país dividido estendendo rede de proteção aos pobres, como se estes não quisessem trabalho nem emprego, apenas bolsa disso e daquilo, auxílio disso e daquilo. Fará isso às custas de impostos cada vez mais pesados lançados sobre as classes médias.
Não chega a ser uma classe, é na verdade um estamento, como definiu Raymundo Faoro em Os donos do poder, o pequeno contingente nacional que inventou outra rede de proteção, mais eficiente do que a dos pobres, que consiste em não pagar imposto algum ou pagar apenas migalhas ao Estado. Empresta ao Estado a juros altíssimos, ganhando juros de dinheiro que não é seu, que na verdade deve ao Estado! Mas como romper o círculo vicioso, se patrocina e financia as campanhas políticas daqueles que prometem mudar tudo? Só se a pretendida mudança seja aquela definida por Tomasi di Lampedusa (1896-1957), de que é preciso que tudo mude para que tudo continue como está.
Nisto Lula está certíssimo: este pequeno contingente manda no Brasil há muitos séculos e continuou a mandar no governo dele. Antes, cercando a Coroa portuguesa, depois o imperador, depois a República Velha, depois a ditadura militar, depois a Nova República, mas sempre fazendo bons negócios.
Debates, sempre
As massas querem entrar para a universidade? Sejam-lhe dados os cursos, de preferência entrando sem vestibular que examine méritos, competências específicas e vocações. No lugar de tais seleções, um maço de quotas de todos os tipos, de preferência aquelas quotas que não podem ser discutidas sem se resvalar para o perigoso caminho da desagregação nacional, instilando ódio racial, ódio de quem estuda e quer ascender socialmente por méritos, ódio a tudo que não seja benesse. Mas, enfim, conquistado o diploma de algum tipo de curso superior, não serão mais do que desempregados com curso superior.
Enfim, não houve debate. Houve troca de acusações para se dizer que cada um tem tais e quais defeitos. Provavelmente os dois lados estavam certos.
Mas o problema do eleitor é outro: quem é o mais capaz para fazer com que o Brasil deixe de ser dividido em dois, entre aqueles que cada vez pagam mais impostos e os outros que precisam de favores do Estado, pagos com os recursos angariados com a carga tributária?
O governo do Brasil, como todos os governos do mundo, não produz nada. Reparte apenas. Está repartindo mal há muitos séculos.
Tudo indica que não será ainda desta vez que a distorção será corrigida, mas uma coisa é certa: se continuar assim, vai piorar de tal modo que daqui a pouco ninguém mais suportará.
Mas quando será este dia? É triste constatar que a democracia não está resolvendo os problemas que prometeu resolver. E este é um tema perigoso demais para ser discutido em debates de televisão, com tantas restrições.
Um diz que vai vender um avião da presidência da República para com os recursos construir hospitais. A metáfora pode ser simbólica e exemplificar outro modo de gerir, mas os verdadeiros recursos para as reformas de que o Brasil tanto precisa estão em poder do pequeno estamento que vive dos juros da chamada dívida pública.
O vice-presidente de Lula de vez em quando bordeja o problema central do Brasil – os juros – mas certamente é aconselhado a calar-se, pois mais silencia do que revela que, como empresário, sabe bem onde aperta o sapato.
Mas de debate em debate o povo aprende. E aprendem também aqueles que debatem. É preciso multiplicá-los e realizar debates sempre, não apenas em época de eleições.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br