Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A miopia informativa da mídia tradicional

A campanha eleitoral de 2006 foi, até agora, aquela em que os recursos da internet melhor foram usados em benefício do eleitor. Pela primeira vez na história política do Brasil, os eleitores com acesso à rede tiveram à sua disposição informações suficientes para formar um perfil comparável dos candidatos em contraponto à propaganda eleitoral. A iniciativa, porém, não veio dos meios de comunicação tradicionais.

Os brasileiros têm acesso comercial à internet desde as eleições municipais de 1996. A cobertura online da eleição começou a engatinhar em 1998. Os políticos fazem propaganda na web desde as eleições de 2000. A internet se tornou um campo de disputa por corações e mentes na eleição de 2002. Os blogs entraram na parada em 2004. Neste ano, entraram em cena os bancos de dados contendo diversas informações de domínio público sobre os candidatos – com destaque para o Excelências, da Transparência Brasil.

A cada ano, mais e mais informações públicas estão disponíveis na internet. A Câmara dos Deputados coloca à disposição de todos os cidadãos vários tipos de informação sobre a atuação parlamentar, incluindo detalhes de como cada deputado gasta suas verbas de gabinete. A maior parte dos tribunais abre suas consultas processuais na internet. A Justiça Eleitoral começou neste ano a disponibilizar as declarações de bens de todos os candidatos. Desde 2003, a Transparência Brasil publica na internet os dados de financiamento de campanhas, no projeto “Às Claras”. O jornalista Fernando Rodrigues também recolocou na internet, neste ano, seu banco de dados de declarações patrimoniais de candidatos, com o nome “Políticos do Brasil”.

Perfil “redondo”

Informação boa, documentada, pública, concretamente comparável, existe. O que sempre falta é explorar melhor essa massa de informações em benefício do cidadão. Quem tem os melhores recursos possíveis para fazer isso ainda são os meios de comunicação tradicionais – jornais, revistas, rádios, TVs. Por algum motivo, porém, a cobertura na maior parte deles continuou sendo feita da mesma maneira tradicional: a corrida de cavalos das pesquisas, o escândalo da hora, a aspa do dia dos candidatos. Sempre faltam comparações concretas entre os candidatos – especialmente, como foi o caso, no tocante ao exército de postulantes ao Legislativo.

Demanda também existia. Em junho e julho, enquanto preparávamos a primeira fase do projeto Excelências e o caso dos sanguessugas não saía das manchetes, a curiosidade pelos antecedentes dos deputados era enorme. Correntes de e-mail com os nomes dos “deputados em que não se deve votar” faziam sucesso na internet. “Onde eu posso obter uma lista dos deputados corruptos?” era um pedido que recebíamos diariamente, especialmente após o lançamento do manifesto “Não Vote em Mensaleiro, Sanguessuga, Curupira, etc”.

A Transparência Brasil começou a preparar o projeto Excelências no primeiro semestre de 2006. Se reuníssemos num só lugar todas essas informações disponíveis mas dispersas, criaríamos um serviço útil ao eleitor. A internet permite a criação de formas fáceis de consulta. Por que não? Estava “caindo de maduro”. Praticamente sem recursos extras além do auxílio de um programador voluntário, tratamos de pesquisar, obter e formatar essa massa de informação disponível.

Como a Câmara dos Deputados abre muito mais informações sobre seu funcionamento do que a maior parte dos outros órgãos da administração pública, inicialmente incluiríamos apenas os deputados que buscam a reeleição. Desses, seria possível fazer um perfil “redondo”, mostrando suas presenças em plenário, emendas apresentadas, quem pagou sua campanha, que pendências judiciais o político enfrenta, como aparece no noticiário de corrupção (do nosso projeto Deu no Jornal).

Vimos também a necessidade de incluir outros políticos de carreira – ex-governadores, ex-prefeitos de capital, ex-ministros, ex-senadores – que buscariam uma vaga na Câmara e obviamente atrairiam a curiosidade dos eleitores. Depois, também abrimos a possibilidade de incluir perfis de candidatos que voluntariamente solicitassem sua inclusão, já que não poderíamos incluir todos os candidatos com o mesmo rigor. Foram mais de 80.

Possibilidades pouco exploradas

Excelências estreou em 1º de agosto e ganhou terreno na blogosfera e na googlelândia. Nossos estagiários apelidaram o projeto de “Orkut dos deputados”. Era bem mais que a “lista de maus políticos” exigida pelos internautas. Essas listas foram providas à farta por publicações tradicionais, com as várias versões da lista dos sanguessugas sendo o maior exemplo do ano. Uma arte publicada na Veja com as fotografias de deputados acusados de malfazenças fez sucesso nas correntes enviadas por e-mail.

Ocorre que fazer meras listas de políticos malfeitores é pouco e quase dispensa o cidadão de pensar por si próprio. A saúde de uma democracia representativa depende da qualidade do controle público exercido pelo cidadão sobre seus representantes eleitos. Muitas vezes, também, o que define o voto não precisa ser exatamente o fato de um político ser acusado. Políticos que nunca foram acusados de nada podem ter atuações pífias, com muitas faltas ou excesso de projetos inócuos (como homenagens ou criação do dia de sabe-se lá o quê). Os financiadores da campanha também indicam, de alguma forma, os interesses que apóiam o candidato. O eleitor precisa conhecer esse dado para julgar se seu voto é compatível com esses interesses.

Reunindo o máximo possível de informação sobre como os representantes eleitos exercem o poder em nosso nome, supusemos, não apenas ajudaríamos os eleitores a votar melhor – por conhecer melhor a atuação política de seu candidato – como também ajudaríamos a criar sede por informações atualizadas a respeito de como eles exercem seus mandatos. A fiscalização dos políticos, afinal, não deve ocorrer apenas nos anos eleitorais, quando temos a chance de tirar o emprego dos maus representantes.

A internet oferece as mesmas possibilidades para todos. Hoje, para fazer um bom serviço informativo, depende-se basicamente de cabeças e computadores, ambos os fatores em bom estado de uso. A flexibilidade da internet como plataforma para relacionar e organizar informações abre possibilidades ainda pouco exploradas pelos meios de comunicação tradicionais – muito embora eles disponham de muito mais cabeças e muito mais computadores do que a Transparência Brasil.

Isoladas, esporádicas

Um mês depois de o Excelências entrar no ar, a Folha de S.Paulo colocou na internet um banco de dados cruzando informações disponíveis sobre candidatos de São Paulo. O Congresso em Foco – sítio dedicado à cobertura do Legislativo federal – repetiu no último mês da campanha seu levantamento sobre antecedentes de candidatos no STF. Vários jornais aproveitaram o material do Excelências. Mas, fora isso, pouco se viu de novo aproveitando a massa de informações que estão disponíveis aos leitores e jornalistas.

Mesmo a Folha, que dispunha de um banco de dados próprio e do banco de declarações de bens, usou pouco essas informações para embasar reportagens. O grosso da cobertura eleitoral continuou em torno das pesquisas e do declaratório do dia. Os verbos mais usados nos títulos: “diz”, “nega”, “afirma”, “acusa”. Pouca reportagem. Vários artigos. Opinião para todos os gostos. Compreende-se que o período foi excepcional em termos de denúncias envolvendo políticos. De qualquer forma, a imprensa se deu pouco à tarefa de trabalhar a informação para facilitar a vida do eleitor.

A grande questão que se coloca é: havendo demanda por informação comparável e oferta de dados públicos, por que não partiu dos meios de comunicação – que têm mais pessoal e recursos – uma iniciativa do gênero? Levantamos aqui algumas hipóteses:

1. Os meios de comunicação brasileiros ainda não têm familiaridade suficiente com a questão do direito de acesso a informações públicas, e não sabem trabalhar bem essas informações a serviço de seus leitores.

2. A chamada “convergência” dos meios de comunicação é ainda uma falácia. Jornalistas e informatas não aprenderam a dialogar – nem em empresas que empregam as duas classes de profissionais – para bolar novas formas de apresentar a informação ao eleitor.

3. A orientação dos portais de internet das empresas de mídia ainda é mais comercial do que jornalística.

É possível que a realidade esteja num misto dos três fatores. Isso porque há casos excepcionais que comprovam a capacidade da imprensa de virar a massa de informação pública em favor do cidadão e provocar avanços institucionais.

Ocorre, infelizmente, que essas iniciativas de tratamento jornalístico de informações públicas ainda são isoladas e esporádicas, apesar de todo o impacto que têm na vida dos cidadãos e no funcionamento das instituições.

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Coordenador do projeto Deu no Jornal, da Transparência Brasil; foi o editor do projeto Excelências e edita o blog do Deu no Jornal