Onde está o dinheiro sujo
O Estado de S. Paulo e o Globo reproduzem reportagem que circula há dois dias na internet, com origem no Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo, sobre 2,5 milhões de documentos bancários, nos quais são revelados os proprietários de 250 mil contas secretas em paraísos fiscais.
Trata-se potencialmente do maior escândalo financeiro dos nossos tempos.
Algumas das primeiras revelações atingem um ex-colaborador do presidente da França, François Hollande, acionista de pelo menos duas empresas que mantém contas na Ilhas Cayman.
Também são citados dois filhos do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe e um general venezuelano, além de outras autoridades e empresários de várias partes do mundo.
Mas há muito mais.
Os documentos compõem um superarquivo digital de 200 gigabites, cerca de 150 vezes maior do que o conteúdo divulgado pelo site Wikileaks.com sobre segredos diplomáticos dos Estados Unidos.
A diferença entre a iniciativa do ativista Julian Assange, que tem sido tratado como terrorista internacional pelo governo americano, e o projeto do consórcio de jornalismo investigativo é que, no caso do Wikileaks, os documentos eram simplesmente postados na rede mundial de computadores, enquanto o consórcio usa as informações primárias como fontes de reportagens e verifica a veracidade delas junto aos suspeitos de serem donos do dinheiro.
A Folha de S. Paulo provavelmente não teve interesse em reproduzir o relato, o que causa estranheza, pois foi o primeiro jornal brasileiro a repercutir os vazamentos do Wikileaks.
O desinteresse da Folha se torna ainda mais bizarro se for considerado que a revelação dos nomes de proprietários das contas em paraísos fiscais está sendo feita com o trabalho colaborativo de 38 grandes instituições da imprensa internacional, entre as quais o jornal inglêsThe Guardian, o americano Washington Post, o francês Le Monde e a rede britânica de televisão BBC. (Veja aqui o texto do Guardian, em inglês: www.guardian.co.uk/uk/2013/
E os outros?
Nem todos os dados se referem a depósitos ilegais, mas o trabalho jornalístico permitiu identificar alguns casos emblemáticos, o que inspirou o Monde a escolher como manchete uma afirmação bombástica: "Como os bancos franceses ajudam seus clientes a praticar a evasão fiscal".
Essa é a chave-mestra para qualquer política de combate ao crime organizado e à corrupção em todo o mundo, mas até aqui a imprensa nunca tinha se atrevido a devassar a caixa-preta dos paraísos fiscais.
Na primeira lista divulgada, os únicos brasileiros citados são três membros da família Steinbruch, cujo representante mais conhecido é o empresário Benjamin, que controla o grupo Vicunha, o banco Fibra e a Companhia Siderúrgica Nacional.
Procurados pelos jornalistas do consórcio investigativo, os Steinbruch explicaram que mantém uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, devidamente registrada no Banco Central do Brasil e legalizada nos órgãos fiscais brasileiros.
No entanto, as primeiras revelações são apenas uma pequena parte do imenso arquivo que está sendo analisado pelos investigadores.
O problema da evasão fiscal e do trânsito de dinheiro ilegal por contas bancárias chamadas "off shore" é considerado por especialistas como um dos maiores problemas da economia mundial.
Além de servir de abrigo para o lucro de atividades criminosas que vão desde as grandes fraudes financeiras até o contrabando de armas e o tráfico de drogas e de seres humanos, esse tipo de operação bancária tem servido para ocultar as fortunas acumuladas por tiranos e autoridades corruptas em centenas de países.
A existência dessas ilhas de impunidade e descontrole tem provocado até mesmo incidentes políticos, como o questionamento do rigor fiscal imposto pela Grã Bretanha a negócios legais enquanto o país tolera o trânsito de dinheiro suspeito pelos bancos das Ilhas Virgens.
O texto distribuído pelo Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo (veja aqui, em inglês: www.icij.org/) afirma que boa parte da crise na Europa é provocada ou agravada pela evasão através dos paraísos fiscais.
Os atuais habitantes do antigo paraíso tropical dos Tupiniquins esperam que a imprensa siga revelando nomes e valores, "duela a quién doler", como diria aquele ex-presidente.