DIRCEU NO JB
Cachê gordo
‘O contrato que José Dirceu assinou para ser articulista do Jornal do Brasil lhe renderá 20.000 reais por mês. Ele se transforma, assim, mesmo sem nunca ter escrito uma linha, num dos mais bem pagos do país.
Globo na Indonésia
A Globo fechou um acordo inédito para a exibição de novelas na Ásia. A parceria de quatro anos prevê a veiculação de 500 horas por ano de teledramaturgia brasileira no canal a cabo Vision 2, que estréia em março, na Indonésia. Pelo contrato, o horário nobre será ocupado permanentemente por duas novelas da Globo – as duas primeiras serão Laços de Família e O Clone.’
CRISE DAS CHARGES
Guerra das caricaturas
‘Palavras ásperas têm sido trocadas nas duas últimas semanas sobre o direito, a necessidade e a propriedade de publicar as caricaturas do profeta Maomé que inflamaram o mundo muçulmano. A publicação é legítima, insere-se na tradição não só de liberdade de expressão como de sátira de figuras religiosas que faz parte da cultura ocidental, e os desenhos, embora possam compreensivelmente ser interpretados como ofensivos por seguidores do Islã, não têm teor criminoso de incitação ao ódio racial. Ademais, publicá-los, como argumentou um jornalista alemão, equivale a exibir o corpus delicti: ajuda os leitores a avaliar o real teor dos desenhos. Sem contar que não divulgá-los implicaria ceder a um clima de medo e intimidação. Esses foram os principais argumentos dos órgãos de comunicação que publicaram as caricaturas dinamarquesas, inclusive VEJA. Nada disso, contrapôs-se o lado contrário: a divulgação dos desenhos é uma provocação gratuita, incentiva o preconceito contra muçulmanos, ofende toda uma religião ou – e este argumento está entre os mais simplórios – é burrice mostrar as charges.
O debate envolveu jornalistas, intelectuais, líderes políticos, estudiosos das religiões e algumas poucas personalidades muçulmanas de destaque, entre as quais o ativista polêmico Tariq Ramadan, que aborda o assunto nas Páginas Amarelas desta edição de VEJA. Foi uma discussão acalorada e chegou a escorregar para a irracionalidade, mas ninguém pediu a cabeça dos adversários (bem, talvez alguns jornalistas tenham pensado em fazer isso, mas não passaram do campo da expressão inconsciente de desejos). Ao contrário, as manifestações manipuladas e insufladas por grupos fundamentalistas em países muçulmanos e europeus usaram de violência desproporcional tanto em palavras (vide o cartaz da foto acima) quanto em atos, como se viu nos ataques a representações diplomáticas. A forma como a ‘guerra das caricaturas’ foi induzida e manipulada por militantes fundamentalistas e ditaduras árabes ajuda a entender a onda de ódio que se espalhou mundo afora. Ajuda também a dar algum alento a quem acredita que, excluindo-se o elemento do fanatismo, a busca da verdade e da justiça é um valor universal que pode criar um ponto de união entre pessoas que pensam de maneira muito diferente.’
Diogo Schelp
A fabricação do ódio
‘As primeiras reações à publicação de doze charges com o profeta Maomé no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em setembro de 2005, foram uma manifestação pacífica de muçulmanos nas ruas de Copenhague e um abaixo-assinado produzido por organizações da comunidade islâmica no país. Entregue no gabinete do primeiro-ministro da Dinamarca, o documento pedia a punição do jornal. Não foi atendido, visto que não cabe ao chefe de governo de uma democracia punir jornais por discordar do que publicam. Nesse primeiro momento, ninguém fora da Dinamarca tomou conhecimento do assunto ou deu maior importância a ele. Como é possível que um incidente que não atraiu maior atenção tenha se transformado, de modo tão repentino, numa crise global? A resposta: líderes de países muçulmanos e clérigos extremistas deliberadamente aproveitaram a indignação dos fiéis com as charges de Maomé para promover um surto de ataques ao Ocidente e à democracia.
A fabricação do ódio é uma história razoavelmente bem mapeada. A primeira faísca foi acesa pelo imã Ahmed Laban, um líder extremado da comunidade muçulmana da Dinamarca. Palestino, ele trocou Haifa, sua cidade natal, quando Israel foi criado, em 1948, pelo Egito. Lá foi condenado à prisão por envolvimento com a Irmandade Muçulmana, organização fundamentalista islâmica que serve de inspiração ideológica para Osama bin Laden e para os terroristas do Hamas. Exilou-se então na Dinamarca, uma sociedade aberta, liberal, que, tradicionalmente, recebe os forasteiros de braços abertos. À frente de uma delegação de muçulmanos dinamarqueses (há 200.000 deles no país escandinavo), Abu Laban embarcou para o Oriente Médio levando na bagagem um dossiê preparado para demonstrar que a Dinamarca trata de forma racista os fiéis de sua religião.
O dossiê tinha 43 páginas e continha não doze, mas quinze imagens ofensivas ao profeta Maomé. As três extras eram muito mais obscenas e ofensivas. Um desenho mostrava um muçulmano sendo estuprado por um cão durante suas orações. Outro sugeria que o profeta era pedófilo. A última, uma foto, exibia um barbudo com orelhas e nariz de porco – Maomé, na versão de Laban. Não era bem isso, descobriu um implacável detetive da blogosfera. Tratava-se de uma foto de uma brincadeira tradicional numa competição suína no interior da França. Em entrevista a VEJA, na semana passada, Laban negou que tenha usado essas falsificações para incitar a fúria dos muçulmanos contra o Ocidente. ‘Não era esse o objetivo de minha viagem e não há pecado nenhum em eu querer exercer minha liberdade de expressão no Oriente Médio’, desconversou Laban.
Os escudeiros de Laban estiveram no Egito, no Líbano e na Síria. Encontraram-se com os principais líderes religiosos desses países, com o ministro das Relações Exteriores do Egito, Ahmed Aboul Gheit, e com o chefe da Liga Árabe, Amr Moussa. O material do imã dinamarquês logo virou peça de agitação no canal de TV do Hezbollah, grupo terrorista libanês, e nos programas religiosos da rede Al Jazira. O lance decisivo foi feito pelo chanceler egípcio, que levou o dossiê para o encontro que reuniu 57 representantes de nações muçulmanas em Meca, na Arábia Saudita, em dezembro. Em conversa nos bastidores, boa parte deles combinou agir em conjunto para fazer o maior alarido possível com as caricaturas de Maomé. Foi ali que surgiu a idéia de boicotar os produtos dinamarqueses e chamar de volta os embaixadores em Copenhague. O Irã foi mais longe e suspendeu qualquer relacionamento comercial com a Dinamarca – um gesto simbólico, pois o comércio era mínimo.
A motivação dominante por trás da decisão dos governantes dos países muçulmanos foi a de passar um recado ao Ocidente, que os importuna com a exigência de respeito aos direitos humanos e à democracia. Ao colocar as massas nas ruas, incendiar embaixadas e promover boicotes econômicos, tentaram intimidar o Ocidente. Para o público interno, a mensagem foi dupla. Primeiro, que os tiranos são guardiões legítimos da honra do Islã. Segundo, como se viu, a democracia proposta pelo Ocidente é ruim, pois permite a blasfêmia. Alguns protestos nas ruas foram espontâneos, mas a maioria foi manipulada por fundamentalistas islâmicos ou por governos. A polícia libanesa estima que pelo menos um terço da multidão que atacou e queimou a embaixada da Dinamarca em Beirute era constituído de sírios, enviados por Damasco para colocar lenha na fogueira. Na capital síria, a fúria da multidão foi coordenada por homens que se comunicavam por walkie-talkie. De qualquer forma, não há nenhuma possibilidade de realização de uma manifestação pública em Damasco sem autorização oficial.
Bashar Assad, que herdou a Presidência da Síria de seu pai cinco anos atrás, vive um momento difícil. A pressão internacional o obrigou a uma retirada humilhante do Líbano, ocupado desde 1976. A ONU o acusa de ser o mandante do assassinato de Rafik Hariri, o político mais popular do Líbano. Seu vice-presidente fugiu do país e conspira para derrubá-lo. Numa estratégia de sobrevivência, Assad aliou-se aos fundamentalistas islâmicos e abriu suas fronteiras para os voluntários que vão fazer a jihad no Iraque. A súbita transformação em defensor da fé não é muito convincente – afinal, seu pai reprimiu um levante da Irmandade Muçulmana, matando mais de 20.000 pessoas -, mas é onde ele pode se segurar no momento. Se alguém está gostando da piora das relações entre o Ocidente e o Mundo Islâmico, é o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Populista religioso eleito com os votos das províncias mais pobres, ele desafiou o Conselho de Segurança da ONU ao reativar o programa nuclear. As diatribes do presidente contra os países ocidentais e a ameaça de destruir Israel o tornaram uma figura popular entre os muçulmanos de todo o Oriente Médio e lhe deram fôlego para enfrentar a aristocracia clerical xiita, que não gosta de seus arroubos. Em Teerã, como em Damasco, a polícia olhou para outro lado enquanto a embaixada dinamarquesa era atacada.
Figuras como Laban estão envenenando o relacionamento entre os europeus e os imigrantes muçulmanos. Na semana passada, a Justiça inglesa condenou a sete anos de prisão o xeque Abu Hamza, um refugiado egípcio, por incitação à violência racial. ‘Matar um infiel é sempre justificável, mesmo que não haja nenhuma razão para isso’, pregou Hamza em um sermão cuja gravação a polícia apreendeu em sua mesquita, em Londres. ‘Por viverem em um continente não muçulmano, fundamentalistas islâmicos como Laban e Hamza consideram-se soldados do Islã na frente de batalha pela implantação da lei islâmica em todo o mundo’, disse a VEJA o iraniano Mehdi Mozaffari, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Mozaffari, como outros muçulmanos moderados que vivem integrados à sociedade européia, está preocupado com as artimanhas empregadas pelos extremistas para se apresentar como vítimas e unir a população islâmica contra o Ocidente. Diz ele: ‘Como ocorreu no caso das charges, eles sempre tentam provar que os não-muçulmanos querem acabar com a religião islâmica, o que obviamente não é verdade’.
A ‘intuição divina’ de Jaguar
O cartunista carioca Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, anda morrendo de inveja dos seus colegas dinamarqueses. ‘Meu sonho é que alguém quisesse me matar por causa de uma charge. Isso nunca aconteceu’, ironiza Jaguar. Gracejar com a fé alheia, no entanto, custou-lhe um emprego. Jaguar fez a caricatura ao lado no fim dos anos 60. Nela, um Jesus perturbadoramente humano se explica a uma voluptuosa Maria Madalena. Jaguar tentou emplacá-la na revista Senhor, mas o editor, temendo a censura militar, recusou-a. Duas décadas depois, ele finalmente conseguiu ver seu desenho publicado na seção Notícias do Balneário, que mantinha na revista masculina Status. Foi demitido três meses depois. ‘Não tenho dúvidas de que foi por causa desse trabalho’, lembra Jaguar. O jornalista Paulo Francis, morto em 1997, considerava essa charge de Jaguar o exemplo mais acabado do humor brasileiro, em especial da sua vertente carioca. Dizia Francis: ‘A charge não diminui a fé de ninguém e faz qualquer cristão cair na risada. O Jaguar teve uma intuição divina’. Com reportagem de José Eduardo Barella’
Antonio Ribeiro
Chega de destruição
‘Se o Islã fosse um califado, o terrorista Osama bin Laden teria hoje o turbante mais alto. Mas, se dependesse da pureza da linhagem, o acadêmico suíço Tariq Ramadan poderia, perfeitamente, reivindicar o comando. Ele é neto do egípcio Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana, o primeiro movimento de renascimento islâmico, fonte inspiradora do terror em nome de Alá. Seu pai, Said, um dos fundadores da Liga Mundial Islâmica, foi expulso do Egito e se refugiou na Suíça. As armas de Ramadan são as idéias. Ele é autor de vinte livros que projetam sua visão reformista de um mundo muçulmano integrado aos valores liberais do Ocidente. Professor de filosofia européia e estudos islâmicos no Saint Antony’s College, em Oxford, na Inglaterra, ele transformou-se em guru dos jovens muçulmanos europeus. Ramadan está proibido de pisar numa meia dúzia de países árabes e também nos Estados Unidos. Na semana passada, enquanto multidões saíam às ruas em vários países em protesto contra a publicação das caricaturas de Maomé, Ramadan, 43 anos, entrou num café em Ealing Broadway, em Londres. Pediu um cappuccino e conversou com VEJA.
Veja – O mundo seria melhor se os conflitos entre povos e nações fossem resolvidos por meio de guerras de caricaturas?
Ramadan – Caricaturas e humor dependem da realidade de cada um. Certas coisas são universalmente engraçadas, outras não. Devemos ter cuidado com aquilo em que achamos graça. Num universo de tantas referências, algumas pessoas podem não achar graça nenhuma em determinado assunto. Os muçulmanos não estão habituados a fazer piada com religião. Por outro lado, os países ocidentais estão acostumados com isso há pelo menos três séculos. Um mundo melhor seria aquele em que todos nós, sendo razoáveis, escutássemos uns aos outros, e não se tentasse impor aos outros o nosso senso de humor.
Veja – As charges de Maomé deveriam ser publicadas?
Ramadan – Do ponto de vista legal, sim. No contexto de nossas sociedades cada dia mais pluralistas, com diferentes sensibilidades, eu diria que não é sábio publicá-las. Liberdade de expressão exige responsabilidade. É preciso ser razoável. Diga o que você tem a dizer, sem ofender as pessoas. Na Europa, os jornais não ferem a sensibilidade dos judeus. Por quê?
Veja – Como determinar o que é sábio publicar?
Ramadan – Existem a letra fria da lei e o cotidiano das pessoas. São coisas distintas. A discussão começou na Dinamarca, entre jornalistas. Alguns achavam que as caricaturas deveriam ser publicadas, outros que era pura provocação. Quando a provocação vai gerar reações exageradas? Se alguém disser que esses parâmetros são subjetivos, que tudo deve ser baseado na lei, estará certo. Mas a vida é assim?
Veja – O que o senhor quer dizer com isso?
Ramadan – A vida nunca é uma questão de escolher entre o sim e o não. Isso é uma visão binária do mundo, da qual discordo. Porque sou livre, faço o que quero. Então faça, e você terá o confronto. Do lado dos muçulmanos, porque é proibido, não faça. Essa atitude preta ou branca é perigosa. Não conduz as pessoas ao diálogo, mas à disputa por poder. Essas questões são uma projeção da vida, merecem respostas com nuances.
Veja – As referências não devem ser claras?
Ramadan – Convivemos com pessoas que não dividem os mesmos valores e sensibilidades. O que devemos fazer? Eu ou você? Eu contra você? O que precisamos é de conhecimento mútuo. Se eu não sou igual a você, nós precisamos nos conhecer. Uma sociedade democrática nunca irá reduzir o convívio das pessoas apenas ao aspecto legal. A Europa tem valores intocáveis. Quem for viver aqui deverá respeitá-los ou estará ferindo a consciência européia. Costuma-se fazer piada na Europa e nos Estados Unidos com o sofrimento judeu? Não. E concordo plenamente que não se deve fazê-lo, mesmo que seja legalmente permitido. A precaução intelectual quando se abordam questões sensíveis é o ponto de partida do humanismo.
Veja – Quais são os limites a ser respeitados quando se fala em liberdade de expressão?
Ramadan – É preciso respeitar a sensibilidade coletiva. O problema é que muitos europeus notaram que o continente onde vivem mudou, tornou-se ainda mais diverso do que já era. Não é mais possível encarar o Islã como algo estrangeiro. Veja o meu caso. Como muitos filhos de imigrantes, sou europeu e muçulmano. Portanto, a liberdade de expressão deve respeitar também a sensibilidade muçulmana. Ao mesmo tempo, digo aos muçulmanos, tomem uma atitude crítica e intelectual diante da realidade, não reajam apenas emocionalmente. Eles devem levar em conta que os europeus viveram de acordo com essas regras durante séculos.
Veja – Muitos europeus temem que os muçulmanos não estejam atrás de respeito, mas de submissão?
Ramadan – Por que submissão? Quem pensa assim não tem confiança em si próprio. É medroso, sua atitude não emana do orgulho, mas do medo. ‘Esses caras estão colocando minha identidade e valores em risco.’ Eu falo em convivência, em viver juntos. Estou interessado em construir pontes entre as pessoas, para criar um futuro comum.
Veja – A reação muçulmana às caricaturas foi exagerada?
Ramadan – Não foi apenas exagerada, mas insana. Acho errado ameaçar governos e a imprensa, promover boicotes econômicos, queimar embaixadas e bandeiras. Não é isso que devemos fazer. Muito menos essa competição de ofensas contra os judeus lançada pelos jornais iranianos.
Veja – Por que não se viu no mundo islâmico a mesma indignação depois dos ataques terroristas em Nova York, Madri e Londres?
Ramadan – Porque no início houve aquela atitude paranóica de achar que se tratava de uma conspiração internacional e de que ‘não temos nada com isso’. Grande parte da elite muçulmana condenou os ataques, mas no nível popular não houve comoção. Desta vez, a questão toca mais de perto a sensibilidade popular que está, claramente, sendo instrumentalizada. Estive em Copenhague em outubro e ainda não havia ameaças. Mais tarde, alguns muçulmanos dinamarqueses visitaram países árabes e passaram a mensagem alarmista. Ou seja, houve uma múltipla instrumentalização por parte de governantes que se diziam defensores de valores islâmicos e de ditadores árabes que apontavam os países ocidentais como responsáveis por todas as frustrações de seus povos. Na Europa, a extrema direita também aproveitou para dizer que os muçulmanos não têm condições de integrar a sociedade ocidental.
Veja – Por que não há ninguém do lado israelense e da comunidade judaica tocando fogo em embaixadas?
Ramadan – Porque os judeus entenderam que isso é pura provocação. E também os israelenses não vivem, como 80% dos árabes, na miséria e ignorância. Eles não têm as mesmas frustrações, tampouco o sentimento paranóico de estar sendo ameaçados, continuamente, pelos países ocidentais. E, dizendo isso, vou ser proibido de entrar em outros países, além da Síria, Arábia Saudita, Egito, Tunísia…
Veja – Em que sentido a pobreza influenciou a reação violenta à publicação das caricaturas?
Ramadan – Miséria e ignorância propiciam reações populares puramente emocionais. É mais fácil para os governos locais, sob pressão para abrir sua sociedade e adotar a democracia, direcionar essa fúria para longe deles e na direção do Ocidente. É por isso que os incidentes mais graves ocorreram nas nações muçulmanas que estão em confronto aberto com os países ocidentais. Líderes fundamentalistas também se utilizam com freqüência desse discurso do estilo ‘nós contra eles’. Eles acabaram beneficiados pelo fato de uma caricatura ter mostrado o profeta Maomé com uma bomba no turbante. Esse detalhe reforçou a idéia de que os ocidentais não gostam do Islã. O muçulmano moderado sentiu-se ofendido ao ser visto no Ocidente como um terrorista.
Veja – Por que os muçulmanos europeus reagiram de forma mais comedida?
Ramadan – Os muçulmanos europeus entenderam de cara o desafio que a questão das caricaturas impunha e o perigo que ela representava. Os muçulmanos franceses tomaram a iniciativa de processar os jornais. Embora eu não concorde, é uma atitude menos emocional e, de certa forma, uma abordagem mais construtiva. Ou seja, não caíram na tentação iraniana de querer se exibir como o líder da resistência ao imperialismo ocidental. Os muçulmanos europeus devem permanecer firmes contra essa insanidade.
Veja – Estamos vivendo um confronto de civilizações?
Ramadan – Não, o que estamos presenciando são confrontos dentro de cada civilização. Tanto no Ocidente como no mundo islâmico existem aqueles que defendem a necessidade de enfatizar os valores comuns das duas sociedades. Os obtusos, em oposição, acham que seus princípios são melhores e devem ser seguidos pelos outros, nem que seja na base da imposição. Minha posição é a seguinte: os moderados devem se unir e rejeitar as polarizações. Se o Ocidente e o Islã partirem para o confronto de civilizações, os dois lados sairão derrotados.
Veja – O Islã é compatível com as liberdades ocidentais?
Ramadan – Claro que sim. É compatível com o Estado de direito, com a igualdade de cidadania, com a separação das esferas pública e privada, com governos transparentes. A percepção de que o Islã é dominador, dogmático e violento, enquanto o mundo ocidental é livre, democrático e racional, representa uma visão maniqueísta, completamente sem sentido, baseada no desconhecimento da história do Islã. Tivemos nosso período das luzes e também de trevas. Há uma boa dose de influência islâmica nos valores ocidentais. Do ponto de vista cultural, considero-me ocidental e, portanto, favorável à democratização dos países islâmicos e à liberdade de expressão.
Veja – O Islã precisa de um Voltaire (nome literário de François-Marie Arouet, 1694-1778, escritor francês notável por suas idéias anticlericais e pela cruzada contra a tirania)?
Ramadan – O Islã precisa de mais estudiosos, de intelectuais com disposição autocrítica. O que temos hoje não é progresso, mas regressão. Existe um imenso abismo entre nossos ideais e nossa prática. Portanto, precisamos de reformas – e elas não podem vir de fora, ou terão efeito contrário. O mundo ocidental tem um papel importante a desempenhar, que é dar espaço a uma reforma autônoma do Islã. Mas é preciso admitir que o Islã nunca será exatamente como o Ocidente quer.
Veja – Que tipo de reformas o senhor defende para o Islã?
Ramadan – Precisamos parar com essa mania de achar que todos os nossos problemas são causados pelo Ocidente. Há anos venho pregando reformas em livros, artigos e conferências. No mundo islâmico, muita gente prefere me acusar de ser fantoche dos americanos. Fui convidado para lecionar na Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos. Mas o governo americano negou o meu pedido de visto com base na legislação antiterror criada depois dos atentados de 2001. Ou seja, nem entrar no país eu posso. De que adiantaria eu assumir o papel de vítima, como sempre fazem os muçulmanos, achando que todos os problemas vêm de fora?
Veja – Por que o senhor pediu uma moratória na prática de apedrejamento das mulheres adúlteras no Islã, e não um banimento total?
Ramadan – Porque essa punição está escrita no Corão, que é a palavra de Alá. Não é possível simplesmente pedir para retirar esse trecho do livro santo. O mais importante é parar com a prática até que ela se torne um hábito em desuso. Depois, precisamos avançar com a idéia de que, se há texto, também há contexto. Apesar de tudo, eu disse para quem quisesse ouvir na Arábia Saudita e na Nigéria que sou contra apedrejamento, punições físicas e pena de morte. É preciso ir devagar.
Veja – O que deve ser feito para acalmar os fundamentalistas?
Ramadan – Precisamos traçar uma linha divisória. Alguns radicais pregam não só atitudes estranhas, mas também contra a verdadeira natureza do Islã. Essa prática precisa ser condenada sem hesitação. Mas não basta, é preciso que a repugnância seja comunitária.
Veja – Qual o melhor caminho para reduzir a tensão entre o Islã e o Ocidente?
Ramadan – O fato de existirem milhões de descendentes de árabes e muçulmanos vivendo no Ocidente causa um impacto tremendo no Islã. O mundo islâmico está de olho em nós. Se conseguirmos estabelecer uma boa convivência, sob uma base de confiança mútua, estaremos enviando o sinal de que é possível repetir essa experiência num patamar mais amplo, entre o Islã e o Ocidente. O maior atrito ocorre na Europa, mas é também onde há maiores possibilidades de diálogo. O desafio é tremendo. O caso das caricaturas é o sonho da extrema direita européia e também dos extremistas islâmicos, pois atrapalha o entendimento. Os muçulmanos europeus precisam estar totalmente comprometidos com a identidade européia e convictos de que esta sociedade é também a deles.
Veja – Como o senhor provocaria mais admiração no seu pai?
Ramadan – Construindo pontes entre os dois mundos aos quais pertenço, e que hoje estão surdos e se vendo como caricaturas.’
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