Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

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>>Entre ilusão e utopia

O teste da maturidade

Durou treze dias, quase duas semanas, o protesto contra o aumento das passagens do transporte urbano em São Paulo.

O movimento, que se espalhou por uma dezena de capitais, ainda desafia estudiosos de questões sociais, e demonstra a força de milhares de anônimos nas ruas, sem orientação partidária e movidos por palavras de ordem improvisadas e generalistas.

Nesta quinta-feira (20), a imprensa noticia o recuo do governador e do prefeito, mas não pode afirmar que a crise acabou. 

Há uma nova manifestação marcada para esta tarde, e tudo indica que será a maior de todas, e possivelmente a mais festiva, com a convergência entre o movimento original, surgido entre acadêmicos das regiões centrais da cidade, e os focos de protesto que começaram a aparecer nos dois últimos dias em bairros da periferia.

No encontro dessas duas correntes pode se escancarar o abismo que representa historicamente a grande chaga da sociedade brasileira – ou pode se dar, enfim, o grande encontro entre as duas frações de um país que já foi chamado de Belíndia. 

A expressão foi inventada pelo economista mineiro Edmar Bacha em 1974, quando tinha ainda 32 anos de idade, numa fábula intitulada "O rei da Belíndia", na qual retratava a sociedade desigual criada pelo regime militar, que dividia os brasileiros em duas categorias sociais como se vivessem em países distintos – a Bélgica da classe média abastada e a Índia dos miseráveis.

As duas últimas décadas registram uma redução dessas diferenças, e uma classe de renda média que emergiu graças à estabilização da moeda e às políticas sociais de distribuição de renda está arquivando o país ficcional de Bacha no nicho das fábulas econômicas.

Mas ainda restam grandes diferenças culturais e de oportunidade entre as duas porções de Belíndia. 

O custo das tarifas de transporte público pode ser amenizado com alguma determinação política e boa matemática, conforme se demonstrou nesta quarta-feira.

Mas a má qualidade do ensino, a precariedade do sistema de saúde e a insuficiência da infraestrutura são deficiências históricas que demoram a ser sanadas.

O fenômeno gerado pelos jovens do Movimento Passe Livre produziu a reversão do aumento das passagens, mas não há hipótese de um milagre no que diz respeito às outras questões, que só serão superadas no longo prazo se houver a mesma determinação política – que a pressão popular pode estimular. 

Entre ilusão e utopia

O teste de maturidade do movimento será esse: consolidar a onda de protestos em um instrumento permanente de ação política.

Mais interessante, porém, é a possibilidade do encontro de duas massas de manifestantes: aquela que conseguiu reverter o aumento das tarifas desfilando pelas avenidas centrais da cidade, e aquela que mais se beneficia dessa conquista, que vai marchar das periferias para o centro.

Será também o teste definitivo de uma forma de organização que pode ser chamada de "caórdica" – porque parece improvisada e aleatória, mas produz uma ordem objetiva e efeitos concretos. 

Os jornais desta quinta-feira passam ao largo dessas questões e ignoram a possibilidade do encontro entre os dois Brasis.

As edições se concentram em analisar as consequências do recuo dos governantes em relação às contas públicas, fazem análises sobre quem ganha e quem perde politicamente e tentam decifrar a força orgânica das ruas.

Folha de S. Paulo questiona: "Cai a tarifa – quem vai pagar?"

Globo destaca a queda das tarifas e suas consequências políticas: "O efeito das manifestações".

Estado de S. Paulo tenta explicar os bastidores da decisão: "Lula e Dilma pressionam e Haddad cede", diz o título da reportagem central. 

Quem quiser saber como o movimento passou da Avenida Paulista para a Avenida M'Boi Mirim não pode ficar apenas lendo jornais ou assistindo o noticiário da televisão.

A extensão do movimento para a periferia pode ser observada em canais alternativos da Internet, como o Pós TV , que transmitiu ao vivo, sem edição nem cortes, as primeiras mobilizações na periferia.

Definida como uma plataforma midiativista de jornalismo ao vivo,  integrada a redes sociais, a iniciativa não depende de anunciantes. As imagens são captadas e compartilhadas por e com qualquer aparelho conectado à rede, principalmentesmartphones, e o Pós TV garante absoluta liberdade de expressão aos participantes. 

Se vier a ocorrer o encontro das duas correntes na Avenida Paulista, uma delas terá a cobertura da mídia tradicional, a outra virá acompanhada das novas mídias sociais.

O evento poderá resultar numa celebração da vontade popular ou no  fracionamento do movimento em novas, intermináveis e inalcançáveis demandas.

Talvez seja o momento da conciliação de Belíndia em um país mais democrático, talvez venha a marcar a linha divisória entre antigas ilusões e uma nova utopia.