Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

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O refluxo do tsunami

A leitura dos jornais desta quarta-feira (26) não inspira otimismo quanto às chances de as instituições da República darem uma resposta adequada para as demandas verbalizadas pelos protestos que ocuparam as ruas das grandes cidades brasileiras nos últimos dias.

A proposta de convocação de uma assembleia constituinte exclusiva para produzir a reforma política foi pulverizada por uma sucessão de opiniões contrárias de vários protagonistas.

Mas nunca saberemos se o conjunto dessas opiniões reflete o que pensa a sociedade brasileira, porque elas foram selecionadas pela imprensa conforme seu próprio interesse. 

No entanto, o noticiário permite constatar que as forças reacionárias se mobilizaram com muita rapidez e eficiência, e se tornaram mais visíveis.

Enquanto providenciavam uma resposta imediata a uma das demandas mais populares nas redes sociais, o fim da Proposta de Emenda Constitucional no. 37, que tirava os poderes de investigação do Ministério Público, essas potências tratavam de reduzir as possibilidades de uma mudança nas regras da política, que patina no Congresso há quase vinte anos.

Paralelamente, arma-se um cenário no qual a presidente da República termina sozinha, refém de sua própria bancada. 

Muito provavelmente, os líderes do grupo que considera possível manter tudo como está contam com a aproximação das férias escolares para alongar o esvaziamento temporário das ruas.

A urgência das questões levadas a Brasília pelos manifestantes passa a funcionar a favor dos que não querem mudanças, e eles ainda ganham o jeton adicional por conta das sessões extraordinárias, nas quais gastam o tempo com discursos gongóricos.

Ao dar repercussão à demagogia, a imprensa concede solenidade ao que é apenas enrolação e, de certa forma, contribui para que nada aconteça. 

A presidente da República se moveu pela evidência de que é melhor agir rapidamente, ainda que não haja uma proposta madura, porque a onda de protestos propicia as condições para uma ruptura nos costumes políticos, e mostrou flexibilidade para negociar a forma como as regras podem ser alteradas.

Mas cometeu o pecado mortal de deixar fora da fotografia oficial alguns aliados cujo ego só não é maior do que o gosto pelo poder. 

Um jogo perigoso

Sucintamente, o que nos dizem os jornais é que o protagonismo da chefe do Executivo pode ser motivo suficiente para dar aos caciques da política a convicção de que podem fazer concessões no varejo e manter tudo como está, sem o risco de incendiar as ruas.

Mas, a cada resposta parcial e insatisfatória para as demandas dos manifestantes, consolida-se o foco naquilo que é a origem de todos os descontentamentos: a baixa representatividade do regime partidário e a pouca eficiência do sistema de decisão da República em atacar certas carências históricas do País, como a má qualidade da educação pública. 

A exigência de redução das tarifas de transporte não se limita aos centavos a mais: significa que a sociedade não aceita pagar a conta final de todos os desmandos, ainda que se expresse de maneira ambígua.

Há um equívoco enorme, por exemplo, nos protestos contra a Copa do Mundo, feitos genericamente como se o evento fosse um mal em si: todas as cidades que hospedaram acontecimentos desse tipo, como campeonatos internacionais de futebol, jogos olímpicos e exposições mundiais, desde o fim do século 19, tiveram grandes benefícios.

Bairros inteiros são renovados, cresce o turismo, moderniza-se o comércio, melhora a infraestrutura e, principalmente, a população local é imersa na diversidade étnica e cultural que estimula a cidadania. 

No entanto, a falta de transparência nas obras, o crescimento sem limite dos custos e o desprezo com que os organizadores do evento tratam a opinião pública, impondo exigências inaceitáveis, passam a impressão de que o País abre mão de sua soberania para abrigar os interesses da Fifa.

Pesquisa feita pelo Datafolha em abril, um mês antes do início dos protestos, indicava que 90% dos consultados consideravam que a Copa do Mundo seria importante para o Brasil, mas 76% tinham a percepção de corrupção nas obras preparatórias da infraestrutura. 

A mesma lógica pode ser transplantada para a política: os brasileiros apoiam a democracia, mas não aceitam pagar a conta dos aumentos ilimitados dos gastos públicos, não querem mais bancar os privilégios de parlamentares, juízes, prefeitos e governantes em geral, como ajudas de custo para roupas de trabalho, férias de um trimestre, adicionais absurdos sobre grandes vencimentos e aposentadorias nababescas.

Tudo isso é parte do que se entende como corrupção.

A imprensa parece ter acomodado tudo isso na crônica viciada dos jogos do poder.

Mas esse é um jogo perigoso: a aparente calma das ruas é apenas o refluxo do tsunami.