Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>Caluda! Os cubanos vêm aí
>>Orgulho e preconceito

Caluda! Os cubanos vêm aí

 

Os jornais foram surpreendidos pela decisão do governo de importar de Cuba 4 mil médicos para ocupar postos em lugares críticos, onde não há serviço público ou particular de saúde.

 

Os primeiros 400 deverão chegar já na próxima semana e serão enviados para cidades ou bairros que não despertaram interesse de profissionais brasileiros ou do exterior na primeira fase das inscrições no programa Mais Médicos, 84% dos quais no Norte e Nordeste.

 

O noticiário dá conta de que, ao todo, 3511 municípios se inscreveram no programa, o que revela uma demanda de 15460 vagas.

Apenas 15% desse total havia sido completado até quarta-feira (21).

 

Cada médico contratado custará aos cofres públicos R$ 10 mil de salários mensais, mais os custos da mudança e pagamento de moradia e alimentação.

 

O convênio que permitirá a contratação de médicos cubanos foi feito pelo governo brasileiro com a Organização Pan-americana de Saúde, que tem um acordo com governos de vários países, inclusive Cuba, para atender casos de emergência e carência crítica.

 

Os jornais desta quinta-feira (22) explicam que 84% dos profissionais que virão de Cuba têm mais de 16 anos de experiência, 30% são pós-graduados, muitos trabalharam em países onde se fala a língua portuguesa, principalmente na África, e  todos são especialistas em saúde da família.

 

Ainda assim, dirigentes de entidades médicas do Brasil fazem declarações à imprensa condenando a iniciativa.

 

Representantes do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira dão a volta nas informações oficiais sobre o convênio firmado com a OPAS e declaram que o programa é apenas uma jogada eleitoral.

 

Um desses dirigentes chegou a afirmar que o contrato para trazer médicos cubanos tem "características de trabalho escravo".

 

No extremo do destempero, o presidente do Conselho Federal de Medicina opinou que a iniciativa do governo "poderá causar um genocídio".

 

Como se pode observar, um diploma de médico, uma carreira bem sucedida e o acesso a um importante posto de representação profissional não asseguram clareza de raciocínio e honestidade intelectual, e dirigentes das principais entidades médicas do País podem resvalar rapidamente para um discurso irracional e preconceituoso quando os interesses corporativos falam mais alto do que a função social supostamente inerente à sua atividade.

 

Orgulho e preconceito

 

Mas há muito mais por trás dessa discussão.

 

Nas redes sociais e nas correntes de mensagens que se seguem a cada novo movimento do governo nessa área, na tentativa de suprir a carência de médicos fora dos grandes centros, proliferam manifestações exageradas como a do presidente do Conselho Federal de Medicina.

 

Na opinião de alguns de seus seguidores, o governo brasileiro não estaria  apenas "promovendo um genocídio", mas articulando um exército de cubanos para levar o comunismo aos rincões do Brasil, onde supostamente vivem cidadãos mais simplórios e, portanto, vulneráveis à pregação ideológica.

 

Uma leitura transversal de tais manifestações demonstra o nível de estupidez que a radicalidade política pode provocar, até mesmo entre indivíduos cujo nível de educação formal supõe alguma racionalidade.

 

Ao atacar o programa brasileiro, essas entidades atingem diretamente um dos projetos mais bem sucedidos da ONU, que, através de suas entidades de saúde, promove assistência em lugares remotos por todo o mundo e reduz os danos de conflitos e desastres naturais.

 

A imprensa tem que cumprir, pelo menos formalmente, seu papel de ouvir os diversos lados de uma questão.

 

Essa é a justificativa para os leitores de jornais serem apresentados a destemperos desse tipo.

 

No entanto, também é papel dos jornalistas pontuar eventualmente os casos em que o debate resvala para fora do razoável.

 

Uma das alternativas seria mostrar o trabalho feito por médicos engajados em programas desse tipo pelo mundo afora.

 

Mas a imprensa só enxerga, por exemplo, ações de entidades como o Médicos sem Fronteiras, e parece desconhecer as missões humanitárias da ONU.

 

Talvez essa visão seja ainda um resíduo do preconceito com políticas que a imprensa costumava chamar de "terceiro-mundistas".

Por outro lado, as reações corporativistas dos médicos brasileiros revelam que o País formou uma geração de profissionais aos quais falta a mais básica consciência social.

 

A falta de educação cívica não poupa os bem nascidos ou bem sucedidos, que certamente se orgulham de suas carreiras, e os embates provocados pelas entidades médicas nas redes sociais mostram como se pode ir do orgulho ao preconceito em poucos caracteres.