Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O assassinato de uma heroína

Estabeleceu-se que a União Soviética tenha terminado em 9 de novembro de 1989, com o evento que ficou conhecido como “a queda do Muro de Berlin”. A realidade foi um pouco diferente. Tudo começou com uma abertura do regime feita por Mikhail Gorbachev, por um movimento chamado perestrojka (do russo, “reconstrução”), isto é, o conjunto de reformas econômicas que restabelecia, entre outras coisas, o direito à propriedade privada de empresas comerciais que havia sido abolido pela NEP (Nova Política Econômica) implantada por Lênin durante os anos 1920.

O final do comunismo na Rússia foi decretado pela derrota dos golpistas, velhos membros do aparato (1991) que queriam o retorno do antigo regime. Boris Yeltsin liderou a resistência contra estes e se tornou o primeiro presidente eleito e o homem forte do país. Esse foi o fato real que colocou um ponto final da longa experiência marxista no país.

Yeltsin, degradado política e fisicamente, passou o cargo para o novo presidente eleito, Vladimir Putin, ex-membro da KGB (Comitê para a Segurança do Estado, polícia secreta da ex-União Soviética), um homem sem vícios aparentes, um atleta de forte personalidade.

Os dois trouxeram sérios problemas à nação: Yeltsin, numa corrupção jamais vista, patrocinou privatizações que deram praticamente de graça empresas estatais aos burocratas do antigo regime, que se tornaram milionários. Com Putin, além do genocídio praticado na separatista Chechênia (ver “Rescaldo da tragédia de Beslan”), sofrem as liberdades individuais, e os meios de comunicação, mesmo não oficialmente censurados, são cerceados pelo governo.

Há pouco mais de dois anos o jornalista Paul Khlebikov, nascido nos Estados Unidos, foi assassinado em pleno centro de Moscou por mafiosos russos, mas o governo nada teve a ver com isso (ver “O perigo de informar a verdade”).

Nacionalismo baboso

O presidente da Federação Russa Vladimir Putin estava em São Petersburgo comemorando seu 54ª aniversário quando Anna Politkovskaya, de 48 anos, era assassinada a tiros dentro do elevador no edifício onde fica seu modesto apartamento, num bairro popular de Moscou. Ela era a jornalista mais famosa da Rússia, entre os primeiros profissionais livres do tempo da prerestrojka. Recebera dezenas de prêmios, era estimada e amada por todos, o símbolo da independência perante o poder, da defesa do povo checheno, da oposição à guerra na Chechênia, da luta contra o autoritarismo do presidente Putin e também contra o terrorismo independentista.

Quando ela estava voltando para casa, o jornal onde trabalha, Novaya Gazeta, um dos últimos que permaneceram independentes, esperava uma matéria sua para a edição de domingo (8/10). Assunto: a corrupção no Ministério da Defesa e as torturas na Chechênia.

Anna não teve tempo de enviar o artigo. Um killer, armado de uma pistola Makarov, descarregou quatro tiros sobre ela: o primeiro foi logo no coração, o segundo na cabeça e os outros dois, por segurança, no peito – bem ao estilo dos sicários profissionais.

Com o esmagamento da Chechênia e a quarentena aplicada à Geórgia, Putin responde às aspirações populares, porque os russos não querem mais que lhes fujam as “posses” originais.

Anna Politkovskaya não se alinhava com esse nacionalismo baboso, ao mesmo tempo compreensível mas brutal e inquietante. Era uma oposicionista por excelência, uma pedra nas rodas dessa enorme máquina concebida para retornar no tempo. Sobretudo era crítica ferrenha de Vladimir Putin e morreu por isso. Como morrem os heróis.

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Jornalista