Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>O fundamentalismo midiático
>>A racionalidade simulada

O fundamentalismo midiático

Interessante observar como alguns temas expõem de maneira clara certa característica da mídia tradicional, que em circunstâncias comuns fica muito bem dissimulada pela suposta objetividade do discurso jornalístico.

Veja-se, por exemplo, o alto grau de incertezas expostas na maioria dos textos publicados desde a última quinta-feira sobre a próxima sessão do Supremo Tribunal Federal no julgamento dos recursos à Ação Penal 470, e note-se como meras opiniões se travestem de formulações doutorais e definitivas, calcadas em cima de subjetividades. 

Trata-se da mesma característica denunciada pela própria imprensa, de modo geral, no discurso dos religiosos fundamentalistas, sempre apontados como avessos à racionalidade.

Basicamente, trata-se de construir um contexto que seja aceitável pelo senso comum, não importa a complexidade do assunto – e no círculo restrito desse contexto se formulam as opiniões que se quer transformar em consenso. 

Essas manobras epistemológicas só são possíveis por que ainda existe uma espécie de "sacralização" da imprensa, de modo que o mais canhestro apedeuta posa de sábio, jornalistas genéricos se apresentam como juristas e filósofos de botequim são tidos como reencarnações de Platão.

Assim, constrói-se uma espiral opinativa que tem seu eixo nos editoriais e se expande, a partir daí, pelos artigos das sessões de opinião, chegando ao extremo do noticiário como formulações carregadas de racionalidade. 

Não é difícil identificar os pontos de energização dessas espirais.

Primeiro, afirma-se que o julgamento da Ação Penal 470 significa o resgate e a reinvenção da Justiça no Brasil.

Falso: nas últimas décadas não houve uma só mudança significativa na estrutura do poder Judiciário, dos três sistemas da República o mais avesso a inovações. A lógica no sistema da Justiça brasileira ainda é a da monarquia, com a persistência do nepotismo, praticado até mesmo por integrantes da corte suprema. 

Seguidamente,  repete-se que a punição severa dos envolvidos no chamado "mensalão" representa o fim dos privilégios e da impunidade: há outros casos semelhantes em curso na Justiça que permanecem engavetados sem que a imprensa se incomode.

Então, alardeia-se que, se os principais acusados não forem para a cadeia imediatamente, o Brasil será convulsionado por manifestações de protesto. 

A racionalidade simulada

Nesta terça-feira, véspera da sessão que deverá definir se serão aceitos os embargos requeridos por alguns dos condenados, há quem diga até que a decisão do STF vai "balizar a vida de nossas próximas gerações".

Outro articulista vocifera que, se confirmado o direito ao recurso, "será a vitória para os bolcheviques e corruptos lobistas".

Essas são as curvas periféricas da espiral de aleivosias que nascem nos editoriais e procuram compor um discurso coerente com certa noção de moralidade pública apropriada pela mídia tradicional. 

O centro das indignações é, claramente, o ex-ministro José Dirceu, alçado à condição de inimigo público número 1 por parte da elite conservadora que domina a imprensa.

Acontece que Dirceu não é unanimidade nem no seu próprio partido. Mesmo no governo Lula, do qual foi o principal articulador, seu estilo centralizador e autoritário produziu antagonismos.

Em 2005, não eram poucos os militantes do PT que se manifestavam publicamente contrariados com o estilo demolidor do então ministro e seus seguidores. 

Parte das denúncias, inclusive uma história que nunca foi apurada, sobre desvios na Casa da Moeda, teve como origem o "fogo amigo" produzido por desafetos do então ministro dentro da aliança partidária.

O escândalo colocou de volta nas mãos do então presidente o poder efetivo sobre seu governo.

Sem esse evento, Lula não teria liberdade para indicar sua sucessora, a atual presidente da República.

Não são poucos nem desimportantes, então, aqueles que preferem ver José Dirceu longe das instituições políticas. 

A História segue seu curso, como se pode observar, mas a imprensa insiste em dar um significado particular aos acontecimentos.

O discurso dos jornais repete as caraterísticas das prédicas religiosas que tentam criar um racionalidade própria no contexto de um fundamentalismo que repudia a razão.

Essa razão simulada é típica dos discursos maniqueístas.

Se o STF aceitar os embargos infringentes, não é a Justiça, ou, como dizem os articulistas histéricos, a democracia, que corre risco.

Será apenas a imprensa perdendo mais uma aposta.