Asfaltando a via da repressão
A sequência de acontecimentos envolvendo a Polícia Militar em São Paulo e no Rio de Janeiro tem produzido análises mais ou menos apressadas sobre as motivações de manifestantes e sua propensão à prática de atos de vandalismo.
Grande parte das opiniões se apoia em interpretações que têm como ponto comum um conceito difuso de pós-modernidade, que geralmente remete a uma espécie de esgarçamento da racionalidade, como se os valores que formaram o que chamamos de tempos modernos estivessem se desfazendo.
Há teorias interessantes sobre a questão, principalmente nos campos da Sociologia e da Comunicação, mas em textos jornalísticos, que devem ser sucintos e aplicados ao calor dos fatos, tais análises acabam produzindo uma visão apocalíptica da realidade contemporânea, como se a civilização tivesse esgotado suas possibilidades.
Tal conceito, aplicado a um país que ainda tem muito a caminhar até que se possa considerar minimamente democrático, pode ser uma forma perigosa de justificar retrocessos e políticas restritivas de direitos.
Há cerca de vinte anos, a tese do "fim da História", popularizada na imprensa pelo cientista político Francis Fukuyama, levou a comunidade dos países ocidentais a aderir radicalmente aos preceitos do liberalismo econômico, o que produziu sucessivas crises, causadas pela tendência natural do capitalismo à quebra da racionalidade.
A crença na onisciência do capital e em sua suposta capacidade de se autorregular produziu a ficção do crescimento ilimitado dos lucros; quando a realidade se impôs, foi preciso recorrer à mão generosa do Estado, ou seja, o trabalho de todos foi convocado para consertar os estragos feitos pela ambição de poucos.
A decisão de corrigir os danos provocados pelo capital especulativo com os recursos da coletividade afetou a capacidade dos Estados de prover o bem-estar geral, o que levou às sucessivas manifestações de descontentamento que sacudiram as grandes cidades pelo mundo afora.
A percepção geral de que a carência de recursos públicos, provocada pela crise do capital, reduz as chances de toda uma geração, está por trás das ondas de protesto, que na Europa são motivadas pelo desemprego e, entre nós, se expressam em questões pontuais como a má qualidade dos transportes públicos, da educação e da saúde.
A equação impossível
As ondas de protestos podem ser deflagradas por qualquer fato eventual, mas se repetem porque têm uma origem de fundo, capaz de mobilizar pessoas dispostas a correr riscos.
No entanto, a imprensa costuma se referir apenas ao fato circunstancial, tido como detonador das manifestações.
No caso que inaugura esta semana, pode-se identificar na origem dos tumultos em São Paulo a morte de um jovem estudante de 17 anos, baleado por um policial militar.
Na sexta-feira anterior, o protesto que resultou em confronto e na agressão a um oficial da Polícia Militar, marcava a retomada da campanha pela gratuidade dos transportes públicos.
Na próxima semana, a causa imediata pode ser qualquer coisa, e assim teremos, a cada evento, uma explicação pontual.
Por outro lado, articulistas convocados pela imprensa vasculham suas leituras para identificar teorias compatíveis com a circunstância presente.
Acontece que a explicação mais próxima da realidade pode não ser compatível com o que a mídia tenta referendar como senso comum.
Embora os protestos sejam claramente incendiados por grupos violentos sem agenda, que funcionam como detonadores da insatisfação difusa na horda, não se pode afirmar que tudo seja ação de vândalos.
Há um descontentamento geral, um mal-estar de alto teor emocional, talvez não identificável pelos padrões tradicionais de classificação das ideologias.
A locução mais fácil é aquela que repete a tese do "fim da História" no lado oposto do espectro político: a ideia da pós-modernidade talvez seja apenas a versão esquerdista da mesma moeda onde Fukuyama fez cunhar sua efígie.
Há entre os manifestantes vândalos, lúmpens e militantes de seitas anti-democráticas, além de jovens idealistas que sonham com uma sociedade sem tutela.
No outro lado, o Estado se faz representar por uma instituição que abriga criminosos capazes de prender um trabalhador e torturá-lo até a morte e de disparar contra um estudante que inicia sua jornada.
Estamos diante de uma equação difícil de solucionar, se não há disposição de discutir o sistema.
Manietado por interesses de grupos que transformaram a política em negócio privado, o Estado é refém das pesquisas de opinião, que por outro lado refletem o que demandam seus financiadores.
O governador de São Paulo quer mais rigor de sua polícia, como se ela fosse a expressão da meiguice.
A imprensa criminaliza os manifestantes de maneira geral, predispondo a sociedade a aceitar a repressão que virá.
A via da violência está sendo asfaltada.