Uma democracia manquitola
A polêmica sobre o aumento do IPTU na capital paulista tem produzido nos jornais um noticiário manco, para usar a expressão infeliz do ministro da Fazenda, Guido Mantega, a respeito dos fundamentos da economia brasileira.
Desde que a questão foi parar no Judiciário, por iniciativa do presidente da Fiesp, Paulo Skaf, a imprensa dedicou muitas páginas exclusivamente a noticiar e discutir a tramitação da ação, que acabou por anular uma decisão da Câmara Municipal de São Paulo.
O episódio segue o roteiro que levou à extinção da CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – ocorrida em dezembro de 2007, por iniciativa do próprio Skaf.
Na ocasião, a mobilização do presidente da Fiesp provocou grandes contratempos para o então presidente da República, Lula da Silva, mas o desempenho da economia acabou anulando o efeito da queda do tributo.
Um dos resultados da campanha foi a inserção de Skaf entre potenciais candidatos a cargos públicos: em 2014, ele deverá disputar o governo paulista.
Assim como na época da extinção da CPMF, a imprensa brasileira, de modo geral, dispensa aos debates sobre o IPTU uma discussão manquitola, que passa ao largo de questões importantes.
No caso do tributo sobre movimentações financeiras, os jornais omitiram enquanto puderam que a CPMF financiava o sistema público de saúde, a previdência social e os programas de erradicação da pobreza.
Trata-se de um recurso de gestão pública usado em vários países do mundo para desestimular a especulação o garantir ao Estado receita para necessidades essenciais durante períodos de crise.
Visto como parte de um arcabouço tributário que discrimina e taxa os contribuintes de renda mais elevada, esse tipo de cobrança sempre provocou arrepios nos setores mais conservadores da sociedade, avessos a políticas oficiais de intervenção na questão das desigualdades.
Fiel a suas tradições conservadoras, a imprensa brasileira não poderia ter outro comportamento que não o de contribuir para a extinção desse tipo de recurso.
Ambições desenfreadas
No caso das mudanças propostas no IPTU da capital paulista, os jornais adotaram o mesmo comportamento: fecharam um olho para os aspectos de reorganização do peso do imposto na sociedade e se concentraram em martelar os índices mais elevados de aumento.
Como o cidadão paulistano já tem que conviver com um custo de vida muito alto, falar em porcentagens de aumento é provocar descontentamentos, e foi o que aconteceu.
Certamente se pode observar que faltou destreza política ao prefeito de São Paulo, que imaginou poder implantar tranquilamente seu projeto de redistribuição de custos, de maneira a aliviar aqueles que moram em lugares desprovidos da melhor infraestrutura urbana.
A tramitação do projeto, apressada e quase na clandestinidade, ajudou a criar opiniões negativas sobre a medida.
Mas ainda não é essa a questão central nesse episódio.
O prefeito poderia ter encaminhado melhor os debates sobre um projeto que tenta corrigir distorções na cobrança do tributo sobre a propriedade, e para isso deveria contar com a pouca disposição da imprensa para discutir o tema da desigualdade social.
A pressa em suprir as perdas provocadas pelo congelamento de tarifas de ônibus, somadas ao prejuízo que vem se acumulando nas contas do município pelo conluio entre grandes incorporadoras e fiscais corruptos, foi má conselheira.
De qualquer modo, o sistema de comunicações da Prefeitura não produziu a estratégia adequada para facilitar a digestão da reorganização do IPTU, nem esclareceu a sociedade sobre as urgências observadas nas contas públicas.
No entanto, a questão central está bem distante do contexto municipal: o problema se aproxima do tema que foi abordado pela Folha de S. Paulo no domingo (22/12).
Trata-se do apetite descontrolado do sistema judiciário sobre atribuições dos outros poderes.
Na Folha, a manchete de domingo, baseada em entrevista do ministro Luís Roberto Barroso, o mais recente integrante do Supremo Tribunal Federal, afirma que a apatia do Congresso Nacional obriga o Poder Judiciário a fazer a História andar.
A imprensa precisa discutir essa visão, e não aceitar simplesmente que um poder substitua outro, mesmo porque, se há inércia no Legislativo, pode-se afirmar que o Judiciário peca pela ambição desenfreada e personalista.
Isso é que faz do Brasil uma democracia manca.