Independente de qual seja o vencedor das eleições do próximo dia 29 de outubro, será inevitável que se faça uma séria reflexão sobre o papel de centralidade que a grande mídia vem ocupando ao longo de todo o processo eleitoral. Essa reflexão se faz necessária, inclusive, para proteção e garantia futura de procedimentos básicos do jogo democrático.
Pessoas e instituições responsáveis, com credibilidade e legitimidade, devem promover um debate entre os atores que realmente contam – governo, empresários de mídia (incluindo as telecomunicações), fabricantes de eletroeletrônicos e, claro, representantes da sociedade civil – que resulte em propostas concretas para o aperfeiçoamento e a renovação dos compromissos democráticos da grande mídia com a pluralidade e a diversidade de idéias e opiniões.
Se é verdade que ao longo de boa parte da crise política – que nos acompanha desde maio de 2005 – havia um claro descolamento entre o ‘enquadramento’ da cobertura política da grande mídia e a opinião da maioria dos brasileiros, há indícios fortes de que a situação se alterou às vésperas do primeiro turno em relação a parcela significativa da população.
A cobertura que alguns dos principais veículos de referência nacional – impressos e eletrônicos – ofereceram da campanha presidencial em suas últimas semanas parece ter sido determinante para a decisão do voto que provocou a realização do segundo turno. Não será difícil mostrar que essa cobertura buscou inequivocamente favorecer a um dos candidatos a presidente da República.
Base de formação
O que está em jogo não é a liberdade de imprensa, nem é a liberdade de expressão. Essas são garantias constitucionais. Não está em jogo também o jornalismo opinativo quando claramente explicitado.
O que está em jogo é o direito do cidadão de ser corretamente informado. Está em jogo o dever do concessionário de um serviço público – a radiodifusão – de servir ao interesse público e não apenas ao seu interesse privado. O que está em jogo, no final das contas, são as condições para a convivência e o exercício da democracia.
A matéria principal da revista CartaCapital desta semana (nº 415, de 18/10/2006) – com chamada de capa ‘A trama que levou ao segundo turno’ e, no miolo, sob o título ‘Os fatos ocultos’ – levanta sérias questões sobre o comportamento ético e profissional de importantes jornalistas da Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Globo, rádio Jovem Pan e Rede Globo. E traz evidências de que eles agiram em sintonia com a direção desses veículos.
Depois do primeiro turno das eleições o favorecimento partidário continuou, inclusive, disfarçado em formas não-jornalísticas. A revista Veja, por exemplo, chegou mesmo a provocar uma decisão do TSE que mandou retirar, num prazo de 24 horas, os outdoors da edição com data de 11/10, em que Geraldo Alckmin aparece na capa, por burlar proibição da propaganda eleitoral.
Que jornais e revistas e concessionários de emissoras de rádio e televisão tenham posição editorial político-partidária é apenas normal. Que essas posições deliberadamente contaminem a cobertura política – sem serem explicitadas – é violar o direito fundamental dos cidadãos de serem corretamente informados. Não é essa informação que, conforme a doutrina liberal, serve de base primária para a formação da opinião pública autônoma e esclarecida, construtora das decisões do voto?
Oportunidade de ouro
Quando o compromisso democrático é violado em benefício de uma das partes em disputa é sinal que algo está errado. Em outros países onde o controle corporativo privado chegou à mídia, esse tema tem mobilizado players, estudiosos, profissionais e autoridades públicas sob a perspectiva do ‘jornalismo sitiado’. Teme-se pela crescente perda de credibilidade da mídia e as conseqüências disso para a vida democrática.
Entre nós, o ano de 2007 oferece uma excelente oportunidade para uma renovada discussão sobre o papel da mídia, sobretudo das concessionárias de rádio e televisão.
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) divulgou no sábado (14/10) um levantamento das 181 emissoras de rádio e televisão que deverão renovar suas outorgas no próximo ano. Estão na lista as cinco emissoras da Rede Globo (Recife, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), a TV Cultura, a Record, a Bandeirantes (todas de São Paulo) e as emissoras do grupo RBS em Porto Alegre e Florianópolis. Além disso, 80 emissoras de rádio FM e 73 AM também deverão se habilitar para ter suas concessões renovadas.
Não seria essa uma boa oportunidade para que se rediscutisse os critérios de concessão e renovação de outorgas de radiodifusão? Não seria essa, afinal, a hora de se estabelecer entre os atores do setor que deve prevalecer o interesse público?
******
Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)