Com a devida vênia e o reconhecimento pela sua contribuição à história do jornalismo brasileiro, é mister afirmar que o comentário ‘O crime e a foto do crime‘, de Alberto Dines (OI, programa radiofônico de 16/10/06), é um desserviço à democracia, ao interesse público e, especialmente, à reflexão sobre o papel da mídia na sociedade contemporânea. Seu texto publicado na edição de 17/10 (‘A mídia não é culpada pelos conflitos da PF‘) segue a mesma cantilena.
A razão de ser deste OI é observar criticamente a mídia. Neste sentido, ‘tapar o sol com a peneira’ é jogar somente no lombo dos ‘aloprados do PT’ a responsabilidade pela cobertura da mídia – coisa que não é realizada por partido político algum, mas por homens e mulheres que deveriam ter como horizonte ético-existencial a busca da verdade. Sua afirmação de ‘quota-parte mínima’ de responsabilidade da mídia é um escárnio para quem tem um mínimo de atividade cerebral e uma dosagem elementar de sentidos.
‘Nova’ prática
O desserviço à democracia fundamenta-se, especialmente, na tentativa permanente de minimizar a desonestidade da cobertura (no limite diz que as fotos foram ilegalmente publicadas). Qualquer voz crítica contra os jornalistas e/ou a mídia é peremptoriamente desqualificada como ‘sofisma’, ‘teoria da conspiração’, ‘petista’ e ‘censura’. Essa percepção é clara em inúmeras manifestações de leitores deste OI (ver espaço de comentários).
Operando no ‘limite da irresponsabilidade’, a mídia brasileira rasgou definitivamente o código de ética e partiu para algo mais radical: a ruptura do contrato de leitura com seu público (assinante, leitor, telespectador, ouvinte, internauta…). Em última análise, o interesse público foi olimpicamente ignorado neste caso lapidar da cobertura do dossiê, como demonstra de forma consistente o repórter Raimundo Rodrigues Pereira, de CartaCapital. Ou ainda, nas palavras do jornalista Luis Nassif, que escreve neste mesmo OI:
‘Sua matéria na CartaCapital sobre a cobertura da imprensa das fotos do dinheiro que seria pago pelo dossiê Vedoin é uma aula de jornalismo sobre o antijornalismo que parece ter tomado definitivamente conta da mídia’.
Trata-se do que se poderia definir como ‘protagonismo irresponsável’. No caso específico da reportagem de Pereira, a opção de grandes empresas da mídia impressa e eletrônica (incluindo-se os jornais O Globo, Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e TV Globo) caminha na direção de ‘princípios’ da ‘nova’ prática jornalística: alçar a mentira e a má fé como paradigmas. Dane-se o compromisso com a sociedade!
Produção de EPMs
Senão, como entender a posição da jornalista Eleonora Lucena (editora-executiva da Folha de S.Paulo) que, de posse da fita de áudio na qual o delegado Edmilson Bruno combinava o ‘álibi’ do roubo do CD-ROM com a sua repórter Lilian Christofoletti, omitiu essa informação e ainda publicou a mentira? ‘O delegado Bruno disse, ontem, em coletiva à imprensa que o CD com as fotos havia sido furtado de sua sala, na PF – e que ele estava sendo injustamente acusado de ter repassado o material aos jornalistas.’
Repito a pergunta crucial da reportagem de CartaCapital:
‘Qual o sentido de publicar uma informação sabidamente mentirosa, quando a repórter tinha acessado a fonte antes e ouvido – segundo áudio de posse destes grandes veículos – que a condição do vazamento era `sair no Jornal Nacional´ (que emplacou a edição inteira, de 29 de setembro)?’
Aqui mesmo neste OI, seguidamente, o professor Venício Artur de Lima vem alertando para os riscos da ‘mídia partidária’, desde a eclosão do chamado ‘mensalão’. O linchamento sumário de reputações e a inversão da presunção de inocência (direito internacionalmente reconhecido) são as marcas do protagonismo irresponsável. Sobre esta questão, o observador Dines nos oferece seu silêncio – e, de quebra, a credibilidade de Veja como base de seu discurso.
Em seu livro Mídia – Crise política e poder no Brasil, Venício Lima escreve:
‘Escândalo político midiático (EPM) é o evento que implica revelação, através da mídia, de atividades previamente ocultadas e moralmente desonrosas, desencadeando uma seqüência de ocorrências posteriores. O controle e a dinâmica de todo o processo deslocam-se dos atores inicialmente envolvidos para os jornalistas e a mídia’ (pág. 13).
Desde o início da chamada ‘crise política’, que precedeu em muito a disputa eleitoral, os principais veículos de comunicação do país têm se notabilizado em produzir os chamados EPMs até o ‘limite da irresponsabilidade’.
Descaminhos da aventura
Mais uma vez, o objeto da reportagem de capa de CartaCapital se revela altamente elucidativo: os jornalistas que combinaram a versão do roubo com a ‘fonte oficial’ (e publicaram a mentira em suas matérias, logrando seus leitores e telespectadores) praticaram essa nova modalidade de ‘jornalismo’ que Dines não enxerga porque não lhe interessa.
Por fim, o comentário desastrado de Alberto Dines desserve à reflexão sobre o papel da mídia na sociedade contemporânea porque só vê, em contexto tão rico, sua ‘quota-mínima’ de responsabilidade no fato delimitado da cobertura do chamado ‘dossiê Vedoin’.
Ao extrapolar seu papel de informar à sociedade, quando deveria zelar pela divulgação da verdade, do cumprimento do código de ética da profissão, referenciando-se no interesse público, a mídia, a despeito de toda a carga implícita de produção social de sentidos inerente, envereda pelos descaminhos da aventura antidemocrática, no qual sua primeira vítima é a credibilidade dos homens e mulheres que fazem, nos diferentes quadrantes e rincões desse país, o jornalismo brasileiro diário.
É o jornalismo que perde; é a sociedade democrática que tem suprimido seu direito à comunicação.
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Jornalista, doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina, docente e coordenador do curso de Jornalismo do Instituto Bom Jesus/Ielusc, Joinville (SC)