Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Até quando se poderá virar a página?

Há dois anos eu nada sabia sobre a jornalista russa Anna Politkovskaya. Vim ‘conhecê-la’ por pesquisa, quando escrevi para este Observatório dois artigos sobre o massacre de Beslan na Chechênia [‘Como continuar acreditando?‘, de 14/9/2004, e ‘Rescaldos da tragédia de Beslan‘, de 21/9/2004].

Aqui em Belluno, nos últimos seis anos chegaram muitas imigrantes russas que se empregam em geral fazendo aquilo que nem as italianas nem as imigrantes de outros países querem fazer. Uma ocupação que aqui recebeu o nome de badante, um derivado do verbo badare, olhar, estar atento. Podemos chamá-las babás de anciãos.

Tivemos uma que trabalhou para nossa família por quatro anos e assim estabelecemos uma amizade. Ela tem curso superior em música, vem aqui com freqüência usar a internet para ler os jornais de seu país, mais especificamente o Novaya Gazeta. Assim pude conhecer melhor o trabalho da jornalista Anna Politkovskaya, recentemente assassinada.

Até quarta-feira (11/10), dia do funeral, os jornais italianos publicaram numerosos artigos sobre o crime e a vítima, todos com chamada na primeira página. Ali se leu de tudo: das admoestações a Vladimir Putin por grande parte dos governantes da União Européia, até uma entrevista com Mikahil Gorbachev, ex-presidente da União Soviética e acionista do Novaya.

Permissão para matar

Ao funeral de Anna estiveram presentes chefes de Estado, embaixadores, e somente a Rússia se fez ausente: nem uma simples coroa de flores lhe foi mandada pelo governo russo. Seus leitores e seguidores agitavam recortes de seus artigos como se fossem bandeirolas representando a honradez nacional, uma advertência do quanto estão longe os tempos em que se acreditava na liberdade e na democracia. Naquela época se confiava na força da indignação, mas hoje nada mais resta. Restou uma imprensa controlada pelo Estado, onde o brutal assassinato de quem ousou dizer a verdade e foi ‘punida’ não mereceu mais que poucas linhas nas páginas de crônica policial dos diários. O poder para manter a desinformação apresenta a tese que tenha sido um complô, um delito contra a imagem do país.

Sobre Anna, diz Yurji Samadurov, diretor do Museu Sakarov:

‘O homicídio de Anna é contra todos nós. Contra quem procura viver com os próprios ideais. A mensagem do poder é clara – quem se opõe deve estar disposto a terminar assassinado’.

O povo de um país já esmagado pela falta de liberdade não pode usar o fato como a centelha de uma revolta contra o autoritarismo, nem a semente de um movimento oposicionista. As emissoras de rádio e televisão há muito tempo que não citam Anna. Seus livros não são vendidos. Seus leitores não a escutaram, nem a seguiram, nem a protegeram. Foi necessário o seu assassinato para que acordassem. O Estado agora deixou clara uma posição: o jornalismo investigativo na Rússia não é mais consentido, o aniquilamento físico dos opositores é permitido. Nessa década foram 43 os jornalistas mortos no país.

O bem e o mal

O caixão desce na tumba. Ouvem-se salvas de tiros e o hino nacional, aparecem militares num piquete de honra. Não é para ela, mas para um general que está sendo também sepultado lá perto e que teve seu funeral pago pelo Estado.

A desenhista italiana Laura Pellegrini, que assina Ellekappa, faz uma charge no jornal la Repubblica que mostra tudo: duas pessoas estão falando e uma diz: ‘O homicídio de Anna Politkoviskaya. Putin se ocupará pessoalmente’. Ao que responde a outra: ‘De novo?’

Na quinta-feira (12/10), um dia depois do enterro, os jornais europeus nada mais falaram da jornalista russa covardemente assassinada, nem uma simples palavra.

As coisas mudam, só uma não pode mudar: a diferença entre o bem e o mal. Nessa história o mal venceu mais uma vez. Até quando se poderá virar a página e esquecer os fatos?

[Texto de apoio: ‘Mosca, l’ultimo addio ad Anja un funerale contro il Cremlino’ (Moscou, o último adeus para Anna um funeral contra o Kremlin), de Giampaolo Visetti, enviado do la Repubblica]