Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalismo científico e a posse responsável

Há uma proliferação de petshops pelo Brasil, seguindo o exemplo da França ou dos Estados Unidos, entre outros países desenvolvidos. O cuidado com a fauna urbana doméstica tem ganhado requintes inimagináveis nos últimos tempos, de artigos para embelezamento, passando por alimentos balanceados por idade, até terapeutas especializados em mascotes transtornados por conflitos existenciais. Nada que um skinner box não resolva segundo a psicologia behaviorista, pela qual – grosso modo – o condicionamento molda o comportamento.


Embora a domesticação de outras espécies não seja novidade e tenha interferência direta, além de intensa, no cotidiano das pessoas, o assunto ainda ganha pouco espaço nas editorias de ciências. Esse tema está longe de ser avaliado pelo jornalismo generalista como algo relevante. Ter bichinho de estimação (preferencialmente, cães e gatos) está em horizonte longe dos modismos e das abordagens cada vez mais superficiais e banalizadas das reportagens de comportamento.


Basta conhecer um pouco da história evolutiva das espécies. A falta de profundidade na observação jornalística, particularmente sobre este assunto, exige conhecimento e compreensão das dinâmicas sociais, de suas interdependências e mutabilidade. O movimento inercial das redações criou um círculo vicioso, cuja função é transformar a imprensa em imensa roda d´água, em que a função é repetir o ciclo incessantemente.


Mas quem está interessado em caminhar no sentido oposto ao da procissão da mediocridade? É mais cômodo retratarmos os absurdos que geramos do que usarmos o jornalismo como instrumento de orientação e educação. E, nesta prostração, desconsideramos o gigantesco universo dos trabalhos acadêmicos e as pautas fantásticas que emergem dali.


Canis grifis familiaris


Cobramos sempre a prática da reportagem como uma maneira de romper a burocracia institucionalizada do noticiário. Basta observar que humanos e canídeos (Canis lupus familiaris), subespécie do lobo cinzento (Canis lupus) por seleção artificial, são companheiros há cerca de 100 mil anos, praticamente o mesmo período do surgimento do homem moderno na Ásia. Fiel por ser territorialista e compreender seu clã humano como sua matilha.


Os últimos estudos mostram que esse contato próximo, altamente familiar, afetou a bagagem genética e comportamental dos cães. Atualmente há mais de 400 raças, grande parte gerada por interferência humana no processo evolutivo natural. Isto sem falar da facilitação para se gerarem cães sem raça determinada, chamados vulgar e marginalmente de vira-latas – esses vagamundos, mendigos das ruas, exterminados aos milhares nos centros de zoonese ou por antigos domesticadores.


Ter um cão com pedigree é mais uma grife no universo que compõe o status em sociedades de consumo, viciadas na transmissão de imagens estereotipadas aos pares. O cão é um assessório – deve combinar com a grife dos sapatos, a marca do carro, o valor do relógio e o estilo de vida. O pet, como agora é chamado, perdeu a condição de ser vivo, tornou-se um objeto animado pela grife representada.


Gato satanizado


O jornalismo científico poderia dar grande colaboração ao estimular um entendimento mais profundo da importância e da responsabilidade de se manter a posse de um animal doméstico. De questões simples, como a necessidade de procedimentos higiênicos, tratamento veterinário, responsabilidades do dono e direitos dos animais domésticos, previstos em lei, aos benefícios desta relação inter-espécies. Diversos estudos mostram as vantagens dos oriundos de cruzamento inter-raciais, hoje marginalizados, sobre seus primos de sangue puro. Pois a nobreza concedida pelo título do pedigree nunca representou índice de sociabilidade, resistência orgânica, adaptabilidade, grau de inteligência e de fidelidade ao parceiro humano.


Os ranços trazidos da Idade Média e a ignorância que mantém muito sistema político e econômico em vigência conseguem transformar alguns animais de estimação em ‘servidores do demônio’. Esquecemos-nos, porém, de que esses demônios eram quase todos entidades divinas de culturas religiosas pagãs satanizadas pelo cristianismo, como os nórdicos elfos, fadas e duendes ou os greco-romanos centauros e pã ( palavra que origina paganismo e a forma física clássica do diabo). Vale lembrar que os anjos, hoje símbolos da cristandade, são recorrentes também em diversas religiões primitivas.


A maior vitima entre os integrantes da fauna urbana é o gato doméstico (Felis silvestris catus), uma derivação do gato selvagem africano. Isto sem falar de ratos, ratazanas e camundongos. A pelagem preta do felino é alvo de seitas cristãs anacrônicas, que ainda os trata como servidores do inferno; na tradição mulçumana, o animal reúne qualidades mágicas, além de deter sete vidas. Em muitas culturas o gato preto simboliza a obscuridade e a morte.


Companheirinhos atraentes


O bichano pode até ser peralta, mas está longe de ter parentesco com qualquer espírito maligno. Basta dizer que ele não polui as águas, não envenena o solo e o ar nem põe em risco a sobrevivência do planeta. Sua domesticação situa-se entre 10 e 5 mil anos. De sagrado no Egito, por controlar boa parte dos ratos que invadiam os trigais, foi praticamente dizimado pelas ordens religioso-militares que, ao deterem curandeiros das aldeias, levavam junto algumas dezenas de gatos.


A questão é lógica, pelo menos nos dia de hoje. Como a fitoterapia era usada em larga escala, os magos ou bruxos colhiam ervas, frutos, sementes, raízes e estocavam em suas casas, tornando o local atrativo recanto para os ratos. Para preservar suas matérias-primas, a solução era ter gatos, vários deles. A associação entre bruxos e seus animais domésticos foi devastadora. Os cruzados e os convertidos dizimaram esses pequenos felinos aos milhares, quase os levando à extinção.


Nos últimos anos da década de 1990, no jornal O Estado de S.Paulo os editores notaram que, além das imagens de mulheres bonitas, a vendagem em banca crescia vertiginosamente quando havia fotos de animais na primeira página. Era só tratar destes companheirinhos domésticos. Foram muitas matérias sobre Totós, Rex, Laikas, Lulus, entre tantos outros bichinhos glamourizados.


Parte da luta ambiental


Depois tomaram espaço no noticiário os ataques de pitbulls, dobermans, mastins, filas e outros cães de grande e médio porte – treinados para serem extremamente agressivos –, as atrocidades cometidas contra as pessoas quase trouxeram à tona uma inquisição canina sem precedentes na história da familiarização de canídeos e homens.


Novamente, o que falta é comunicação. E a conseqüência está na amplificação da ignorância. Ninguém questiona a posse responsável do animal. Afinal, qual é a culpa do homem urbano e a influência de seus traumas sobre esses animais?


O jornalismo precisa com urgência refletir sobre sua participação no analfabetismo científico, na ausência de conhecimento das características natas das espécies e das reações instintivas destes pets pela sociedade de consumo. O homem moderno clama por informações que facilitem sua interação com espécies vivas e detentoras de vontade própria – pois esse é um reflexo inerente do movimento ambientalista.

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Jornalista, pós-graduado em jornalismo científico