Em um período político conturbado, no qual a imprensa incorporou mais uma vez o papel de porta-voz oficial da população, a mídia em geral manteve e insistiu nos equívocos já vistos em coberturas anteriores. Cenário já conhecido, dada as diversas interferências dos meios de comunicação de massa no processo político do país, em especial nas disputas eleitorais.
Nessa fórmula tão recorrente, podem-se destacar como agenda pré-eleitoral, o denuncismo e a especulação exagerada dos incidentes envolvendo o governo Lula, transmitidos de maneira totalmente descontextualizada do cenário político, econômico e social em andamento no país.
Desde o episódio do mensalão, que envolveu o governo de Lula, permaneceu na agenda da imprensa, um forte sensacionalismo, que detinha pouco conteúdo informativo, porém gerava um ruído imenso. Já no processo eleitoral, no que tange a discussões políticas e propostas de governo, pouco se ouviu dos candidatos à presidência. O espetáculo ocupou mais uma vez o lugar de uma discussão mais aberta e clara sobre os problemas reais do Brasil.
Entretanto, se o conteúdo transmitido foi o mesmo, não se podem ignorar algumas mudanças no formato de apresentação da notícia. Dessa forma, pretendo refletir sobre uma nova forma de fazer telejornalístico que emergiu no cenário pré-eleitoral. Trata-se da Caravana JN, inaugurada pela Rede Globo de Televisão, via Jornal Nacional.
Com a missão de mostrar os anseios e desejos dos cidadãos brasileiros, a Caravana JN foi ao ar pela primeira vez em 31 de julho de 2006, partindo da cidade de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, e percorrendo todas as regiões brasileiras até o fim de setembro, às vésperas da eleição.
O grande diferencial desse fazer telejornalístico esteve vinculado aos apresentadores do noticiário que, em um processo de revezamento, tinham como cenário para veiculação das notícias o local onde a caravana chegava.
Nesse sentido, o novo ambiente criado para transmissão parcial do Jornal Nacional, foi, a meu ver, extremamente emblemático, uma vez que rompeu com os padrões estéticos da emissora.
Ao resgatar a história do Jornal Nacional durante seus 37 anos de existência, pude perceber que, desde o dia 1º de setembro de 1969, data em que o noticiário foi ao ar pela primeira vez, a emissora investiu em uma estrutura noticiosa que manteve, mesmo que aparentemente, o tom de imparcialidade e objetividade, fazendo desses dois elementos a marca do telejornal.
A preocupação em criar o ideário de jornalismo objetivo e isento percorreu todas as décadas de existência do telejornal. Sendo assim, tanto o visual do cenário, quanto a vida dos apresentadores do telejornal foram, e são, devidamente controlados pela emissora. Em uma análise semiótica que realizei sobre a estrutura estética do JN, pude observar como cada elemento visual do cenário, assim como os apresentadores, visavam reforçar os padrões jornalísticos da objetividade e neutralidade no trato com a notícia. (Montuori: 2005, 160)
Da mesma forma, em estudo de 2002, o crítico de televisão Eugenio Bucci confirmou tal proposição ao estudar o comportamento de William Bonner, no dia 2 de fevereiro de 2002, quando concedeu entrevista ao programa Altas Horas. Segundo Bucci:
‘Bonner não vai ao estúdio do Altas Horas, super-iluminado, ruidoso, adolescente. O Altas Horas é que vai até ele. A entrevista foi gravada contra um fundo negro, em um ambiente silencioso, emoldurado pela escuridão. Daí que, quando aparece no Altas Horas, William Bonner aparece falando de fora para dentro; ele não está no interior do espaço em que o programa é gerado, mas num espaço externo e, mais que isso, muito mais que isso, num espaço anterior ao programa. Está de terno, sóbrio, ainda que tenha uma atitude descontraída. Bonner não perde a pose ou, como ele mesmo diz, não perde a liturgia que o Jornal Nacional lhe exige. Assim, aparece no Altas Horas sem se confundir com o ambiente ultra-informal do Altas Horas. Em outras palavras, o Jornal Nacional não se deixa contaminar pelo Altas Horas. Mantém-se intacto, inexpugnável, mesmo quando vai ao Altas Horas, ou melhor, mesmo quando Serginho Groissman, em nome do Altas Horas, vai até ele.’
Não obstante, em véspera de eleições, um ambiente totalmente novo dividiu espaço com um cenário já conhecido, e passou a disputar com ele a atenção do telespectador. Rompendo com 37 anos de tradição e história, mas mais do que isso, apontando um novo formato estético de transmitir a informação, a Caravana JN colocou seus apresentadores na rua, em praça pública, ao lado da população. Assim, um questionamento sobre a ruptura do fazer jornalístico no telejornal de maior audiência torna-se inevitável: o que de fato motivou o Jornal Nacional a quebrar os rígidos padrões de apresentação, preservados por décadas em que o veículo esteve no ar?
Para responder a essa questão faz-se necessário um estudo mais apurado sobre o campo telejornalístico da emissora. Entretanto, sugiro apenas algumas proposições que podem estar inseridas na estratégia de lançamento da Caravana JN, às vésperas de eleições presidenciais.
Em um primeiro momento, nota-se que esse ambiente propicia ao apresentador maior flexibilidade na exposição das notícias, extraindo parte da liturgia e da informalidade que tanto marcaram o JN durante todos esses anos, e que são emblemas tão prezados pela emissora. Junto com o povo, tentando driblar o barulho, as matérias são narradas ao som de ruídos e cochichos.
No DNA da família
Ao lado disso, o novo formato de apresentação inaugura, mesmo que superficialmente, um diálogo com a massa. Aqui, torna-se evidente a aproximação com o sujeito que, por trás dos apresentadores, aplaude, sorri, acena, gesticula, aponta cartazes, parecendo se sentir integrante do processo de produção.
No que tange ao conteúdo transmitido, tem-se mais uma vez o denuncismo dos problemas do Brasil, que já foram tema inclusive das séries narrativas apresentadas pelo telejornal em outras épocas. A ideologia manipuladora, embutida no formato descontextualizado de transmissão dos problemas do país, via caravana, já foi discutida em artigos publicados no Observatório da Imprensa.
Segundo o professor Gilson Caroni Filho (‘JN e Alckmin: assim é, se lhe parece‘), o conteúdo noticioso transmitido pela Caravana JN tem a intenção de demonstrar desajustes e desacertos do governo Lula, apontando os problemas da fome, da miséria e das calamidades que assolam a população mais carente do Brasil. Agenda nada original, em se tratando das diversas interferências do JN em momentos cruciais da vida política brasileira. Segundo bem caracterizou Afonso, trata-se de um envolvimento histórico, que parece residir no DNA da família Marinho.
Agenda desfavorável
Entretanto, se refletirmos sobre essa estética de produção, poderemos perceber que ela é no mínimo sintomática em relação à conjuntura política brasileira. Todas as pesquisas publicadas pelo Ibope e Datafolha, no período da campanha presidencial, apontaram para uma sensível vantagem do candidato Lula em regiões mais carentes do Brasil, destacando inclusive Norte e Nordeste, regiões por onde passa a caravana. Outro fator marcante nessa campanha está vinculado ao perfil do público-eleitor de Lula, caracterizado pela população mais carente, de menor poder aquisitivo.
Assim, adentrar nesse espaço, de forma legítima, colocando seus apresentadores para confirmar a veracidade dos fatos, lado a lado com a população, pode representar para o Jornal Nacional uma estratégia correta e sutil de influenciar o eleitor que comprou o discurso da aproximação, do governo do povo, fórmula marcante e bem-sucedida do presidente Lula em seus quatro anos de mandato. Estar ao lado do povo, falando diretamente a ele, fez reacender inclusive os debates sobre a possibilidade de um novo populismo, representado na figura de Lula.
Diferentemente da mídia em geral, a Rede Globo parece boicotar a campanha do presidente, sem apoios claros e posicionamentos precisos, mas valendo-se da própria estratégia de Lula. Ao lado do povo, com um jornalismo popular, o Jornal Nacional apresenta e compõe uma agenda política pré-eleição, visivelmente desfavorável ao governo.
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Doutoranda em Ciências Políticas (PUC-SP), mestre em Comunicação, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp)