Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No Mínimo


HISTÓRIA DA PLAYBOY
Pedro Doria


O homem que inventou a Playboy, 13/04/06


‘Aos 80, Hugh Hefner tem a cara que tinha ao lançar o primeiro número de
‘Playboy’, no finalzinho de 1953. Os cabelos ficaram grisalhos e um quê
rareados, a pele do rosto descolou um pouco – mas Hef usa mais ou menos o mesmo
corte de cabelo, ainda veste o pijama de cetim preto e o robe de chambre de seda
vinho, pesa a mesma coisa. E ainda assim ele é uma caricatura do que foi.


Abraçado a suas três namoradas – some-lhes a idade e não chega a 80 -,
desfilou mansão adentro na festa de seu aniversário, segunda-feira. Seu discurso
público já vai ficando meio batido. Bendiz o Viagra, considera-se pai da
Revolução Sexual, título que topa dividir com o biólogo Alfred Kinsey e mais
ninguém, resmunga sobre o puritanismo dos EUA. A seu modo, Hefner é um vestígio
do passado. Não choca mais: é só um velho afeito a moças jovens de plástico. Um
velho com uma imensa vontade de ditar como será lembrado e com um enorme medo de
ser lembrado por termos que não os seus.


Houve o tempo, no entanto, em que as moças na capa da ‘Playboy’
norte-americana não eram de plástico e o comportamento de Hef era radical – se
ele não foi mesmo um revolucionário, foi certamente um dos primeiros a perceber
uma revolução e abraçá-la. A revolução vai muito além do comportamento sexual –
e bem além dos EUA. É a grande revolução do século 20, a revolução urbana.


Um americano como tantos


Hugh Marston Hefner nasceu em 9 de abril de 1926 em Chicago. Mais tarde,
diria que seus pais eram protestantes, conservadores e não muito afeitos a
carinho. Sua família não era de Chicago – vinha do Massachussetts, terra
primeiro colonizada nos EUA pelos puritanos, de quem descendia. Ao completar 18
anos, alistou-se, mas a Segunda Guerra já estava praticamente encerrada e só lhe
restou trabalho burocrático.


Formado, casou-se com a namoradinha dos tempos de secundário – era assim que
se fazia nos EUA – e arranjou trabalho, primeiro como escritor de anúncios para
uma loja de departamentos, depois no departamento comercial da ‘Esquire’, uma
das revistas mais sofisticadas do país. Teve dois filhos com Millie: David e
Christie.


Era a vida ideal de EUA naquele início de anos 50: o homem, de terno escuro,
lentamente vai construindo uma carreira sólida. A mulher mantém a casa em ordem
e toca a educação das crianças. Bem no princípio da carreira dele, uma hipoteca
a juros baixos permite a compra de um automóvel e uma casa no subúrbio, daquelas
com cerquinha branca, jardim gramado e muitos vizinhos iguais. O homem teria
alguns casos extraconjugais ao longo da vida e a mulher fingiria não
perceber.


Havia revistas masculinas, naturalmente. Falavam sobre caça, sobre pesca –
sobre coisas masculinas, um universo sem mulheres. Como se a fase da infância em
que meninos só andam com outros meninos e meninas com outras meninas tivesse de
ser recuperada na idade adulta. Até por trabalhar na ‘Esquire’, uma revista
inteligente que, no entanto, seguia este modelo, Hef parecia fadado a levar a
vida padrão.


Só que, nos tempos de aluno da Universidade do Illinois, ele já publicava um
jornal humorístico que tinha uma Coed of the month – a Aluna do Mês. Havia o
jazz subterrâneo, o be-bop. Algo fazia com que ele se sentisse deslocado. Hefner
costuma dizer que fez a ‘Playboy’ para gente como ele – mas isto não é
exatamente verdade. Grandes revistas têm por fundadores gente que gostaria de
ser algo; o público alvo é o ideal humano de grandes fundadores. Talvez
justamente por ter este ideal mais nítido na cabeça do que quem vive um estilo
de vida determinado, consigam tecer uma identidade editorial com mais clareza.
Assim, o caipira Harold Ross fundou a ‘New Yorker’, ponto máximo do
cosmopolitismo mundial. E o suburbano Hugh Hefner, marido comportado e
descendente dos fundadores puritanos dos EUA, fundou a ‘Playboy’.


Um editor como poucos


A primeira edição da revista, publicada com 8.000 dólares – dinheiro de sua
mobília no prego, da poupança familiar e de um empréstimo da mãe -, foi fechada
na mesa da cozinha de seu apartamento. Assim, Hef adiou em definitivo o sonho
familiar da casa no subúrbio. Na capa, estava Marilyn Monroe, em fotos
produzidas poucos anos antes. Ela tinha acabado de estourar no cinema, mas as
fotos eram baratas porque não havia um mercado editorial para elas. O dono dos
direitos fazia calendários. A data, dezembro de 1953, não saiu na capa porque
ele não tinha idéia de quando haveria número dois. Vendeu 50 mil exemplares.


Vendeu por conta de Marilyn, mas não sobreviveu por sua causa. A ‘Playboy’
era completamente diferente de tudo o que havia. As mulheres nuas não eram como
as mulheres nuas em revistas clandestinas, cartões postais ou calendários. Eram
mulheres como a filha da vizinha – ou a própria vizinha. Hef não vendia femmes
fatales, vendia a namoradinha na faculdade. Eram mulheres normais. E, ao vender
mulheres normais nuas, dava legitimidade ao sexo antes do casamento com a
vizinha, com a amiga. Elas podiam, também, ser objetos sexuais. Portanto, era
uma revista masculina que punha, em primeiro lugar, a relação romântica entre
homens e mulheres, não a de amizade entre homens e homens.


A ‘Playboy’ era completamente diferente não apenas por isso: ela reconhecia
um homem urbano e solteiro que preferia um apartamento a uma casa com gramado.
Antes, permanecer solteiro depois dos 30 levantava logo dúvidas sobre as opções
sexuais do indivíduo. Antes, muito antes, de o conceito de metrossexual sequer
ser cogitado, Hef publicou ensaios de moda para homens. Um homem solteiro, sua
revista parecia dizer, tem que se vestir bem se quiser conquistar as melhores
mulheres. Tem que conhecer bom jazz para ter uma boa coleção à vitrola. Tem que
entender de bebida para poder convidá-la uma noite para seu apartamento,
preparar um drinque, ouvir música, conversar – e transar. Inventou o playboy,
pois é.


Em 1959, após dez anos de casado, Hef se separou: enfim, viraria o que sempre
quis ser – e os anos 60 foram a festa que tinha encomendado. Hef fez-se
libertário. Financiou vários casos judiciais que, por exemplo, terminariam na
decisão Roe vs. Wade, na Suprema Corte norte-americana, que legalizou o aborto
em todo o país. Dava festas que se transformavam em bacanais. Primeiro em sua
cobertura em Chicago – o homem urbano solteiro com seu apartamento-armadilha -,
depois em sua mansão de Chicago, e enfim, na mansão de Los Angeles.


A ‘Playboy’ virou um brand, um dos primeiros reconhecidos internacionalmente.
Transformou-se em boates, cassinos, edições espalharam-se pelo mundo até meados
dos anos 70. Mas, mesmo de dentro da revolução sexual, Hefner repentinamente se
viu com inimigos. Parte das feministas viraram-se contra ele: transformava as
mulheres em objetos. ‘Todo mundo, se tem a cabeça no lugar, quer ser um objeto
sexual’, ele disse certa vez à ‘Esquire’. Na opinião de Hef, o lado
anti-pornográfico do feminismo é o puritanismo disfarçado: ‘Todo mundo quer ser
atraente. Se não for, que vida triste e patética! Viver, no fim, é ser atraente
para outras pessoas e se sentir atraído por elas.’


Os anos 70 foram difíceis e não por conta de feministas ou puritanos:
completa a Revolução Sexual, repentinamente a ‘Playboy’ parecia mansa. Primeiro
surgiram suas grandes concorrentes: ‘Penthouse’ e ‘Hustler’ e houve a Guerra
Pubiana. No início, a revista de Hef mostrava seios, bundas – não o púbis. Com a
flexibilização de leis e costumes, desceu aos pêlos. A cada mês, alguém mostrava
mais – quando seus concorrentes abriram as pernas das modelos, puseram mulheres
beijando-se nos lábios, expuseram línguas, a ‘Playboy’ pisou no freio. Não
chegaria lá – havia um limite de gosto. E assim ficou num incômodo meio-termo:
pornográfica para seus inimigos, discreta demais para leitores potenciais.


A crise financeira veio com a queda de circulação e uma onda governamental
que saiu cassando licenças de clubes e cassinos. A playmate do ano de 1980,
Dorothy Stratten, foi assassinada pouco após sua capa por um ex-namorado
ciumento – e o caso levou a revista às manchetes. Com Ronald Reagan no comando
do país, tudo parecia dizer que aquilo que a ‘Playboy’ propunha tinha levado
seus seguidores à decadência orgiástica, drogas, crime. Em 1985, Hefner sofreu
um derrame. Quando se levantou recuperado, passou o comando da companhia para a
filha Christie. Estava cansado. Em 1989, casou-se pela segunda vez, desta vez
com uma de suas modelos.


Um playboy como não existe mais


Separado, pai de mais dois filhos, Hugh Hefner acaba de completar 80 anos. A
revista vai bem, mas jamais terá, nos EUA, a circulação que teve nos anos 60 e
70. As mulheres na capa já não têm mais a cara da vizinha ou de moças normais –
são mulheres inalcançáveis. E ficou um bocado sem público. Num país onde menores
de idade não podem comprar uma ‘Playboy’, revistas como ‘FHM’ e ‘Maxim’ ou mesmo
a edição anual de biquínis da ‘Sports Illustrated’ oferecem mais. Não têm o
empecilho da nudez – mas quase; e tratam de todos os assuntos que interessam a
alguém no final da adolescência, mais preocupado com conquistar a colega de
escola do que em comprar um terno Armani.


Por outro lado, para um jovem solteiro e independente, a ‘Playboy’ dos EUA
soa ligeiramente arcaica, talvez até kitsch – seu público ideal, o solteiro de
28 ou 30, não sonha com o pijama de cetim ou o robe de seda, não considera as
mulheres mais assim tão misteriosas e a moda, embora sim abraçada por homens, é
bem mais sutil e envolve muito mais códigos delimitadores de tribos. O mundo
contra o qual a ‘Playboy’ se insurgia é, hoje, uma caricatura em filmes de
cinema. E o playboy ouvindo Dizzie Gilespie ou Frank Sinatra, tomando um Jack
Daniels com Coca-Cola não existe mais.


Hefner é um homem de outro tempo, um velho que tem à mão a mulher que quiser.
Já comprou um lote colado àquele em que está enterrada Marilyn Monroe – e talvez
isto mesmo indique qual seu ideal mais profundo de beleza, um bom ideal por
certo, mas um ideal de outro tempo. Arcaico, talvez, mas deliciosamente arcaico.
Não é o único responsável pela Revolução Sexual, mas foi ele quem publicou, pela
primeira vez, que tocar a vida solteiro não é ofensa, que a vizinha pode estar
interessada em sexo e que isto não faz dela uma prostituta. Bem pelo contrário:
faz dela interessante.


‘Cresci’, disse Hef numa entrevista a um aluno da George Washington
University, ‘num mundo em que o que era chamado de moral no campo sexual era
simplesmente uma série de ‘não farás’ e tabus. Em todas as outras áreas, moral é
o que é bom e beneficia as pessoas. Nos anos 60, eu falava desta nova
moralidade, precisávamos encontrar uma nova ética e novos valores sexuais, algo
que realmente fizesse bem para todos. Um grupo de valores que não percebesse
sexo como de alguma forma equivalente à violência porque sexo e violência são
opostos. Um é a força da vida, o outro é a força da morte.’


O mundo depois de Hef ficou bem mais parecido com seu
ideal.’




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