Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

“O MAIOR ACIDENTE da aviação brasileira ocorreu na sexta-feira, dia 29, às vésperas do primeiro turno das eleições. O resultado das urnas ofuscou, inicialmente, o drama das famílias dos 154 mortos e as investigações das causas da tragédia. Nos últimas dias, contudo, o assunto teve mais visibilidade e ficaram evidentes os problemas da cobertura jornalística.

Acesso a informações

O primeiro grande empecilho em coberturas como esta é o acesso a informações oficiais e confiáveis. É compreensível a cautela das autoridades e das empresas envolvidas. Qualquer informação errada pode provocar pânico ou revolta.

Mas a população não pode ficar sem informações. O procedimento ideal é o receitado pelo editorial da Folha de sexta-feira: ‘As autoridades devem agir com transparência e sobriedade na apuração do acidente’. Isso significa fornecer informações corretas com o máximo de brevidade para que não se dê espaço para os boatos e as especulações.

Os jornais acabaram destacando mais informações vazadas por fontes não identificadas que notícias oficiais. Embora as autoridades ainda não disponham de todos os dados necessários a uma conclusão, os meios foram abastecidos extra-oficialmente com dados que levaram o noticiário a praticamente concluir que os pilotos do Legacy são os culpados. A manchete de ‘O Estado de S. Paulo’ de quarta-feira não deixa dúvida: ‘Legacy é culpado pela tragédia’.

Isso, apesar da evidência de que as autoridades que investigam ainda têm mais interrogações que certezas. Um infográfico publicado pela Folha na sexta-feira mostrou que, de oito perguntas-chave para o esclarecimento do acidente, o que os investigadores dispõem até agora responde a apenas três delas. Neste ponto, a imprensa deve agir com obstinação, para exigir informações oficiais confiáveis e constantes, e com cautela, para não cair em tentação.

Conhecimento

Há o problema de fontes e há o problema de conhecimento. A imprensa apanhou, e continuará a apanhar, na cobertura de um assunto extremamente técnico e complexo. O conhecimento acumulado nas Redações na área de aviação é baixíssimo. No caso da Folha, quase inexistente. Os repórteres envolvidos tiveram que desbravar em poucas horas um setor que exige especialização, mercadoria cada vez mais rara nas Redações.

Um leitor, que não identifico porque não obtive a sua autorização, se apresentou como aviador e fez uma série de observações que resumem as mensagens que recebi: ‘Tempos atrás, quando trabalhava em transporte aeromédico, perguntei para meus colegas de empresa, médicos e enfermeiras, se a imprensa era tão imprecisa em relação às notícias a respeito de medicina quanto o era a respeito de aviação, e fiquei pasmo com a resposta afirmativa. Temos lido com espanto, eu e vários outros profissionais da aviação, informações (algumas citando ‘fontes especializadas’), distorcidas e bastante especulativas a respeito do acidente’.

Sensibilidade

O último aspecto tem a ver com a falta de sensibilidade que nos assoma em momentos delicados como este. A linha entre o dever de informar sobre uma tragédia de interesse público e o respeito aos direitos dos que querem sofrer longe das lentes e dos microfones é muito tênue e exige dos jornalistas grande respeito e sensibilidade. A pressa acaba sendo uma péssima conselheira.

É claro que esta avaliação é subjetiva. Eu fiquei chocado na sexta-feira, dia 29, quando assistia o ‘Jornal da Globo’, por causa de um detalhe. A principal reportagem informava que até a meia-noite o Boeing não tinha sido localizado e que cinco aeronaves da FAB continuariam as buscas durante a madrugada. Havia, para quem acompanhava o jornal, alguma esperança. Mas em seguida entrou uma reportagem que foi uma ducha de água fria: ‘Na história da aviação brasileira, os dois acidentes mais graves não deixaram sobreviventes’. E descrevia dois acidentes aéreos.

A reportagem estava correta, mas me pareceu inoportuna. Por que não aguardar um pouco mais por novas informações? Imaginei a decepção de um parente de algum passageiro acompanhando, ainda esperançoso, o telejornal.

Como disse, são avaliações subjetivas. Mas que devem fazer parte das nossas preocupações quando cobrimos tragédias como a do vôo 1907.”



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“Uma lição para jamais esquecer”, copyright Folha de S. Paulo, 08/10/06

“O jornalista Antônio Gois, da Folha, viveu nos últimas dias o drama das famílias que perderam parentes ou amigos no desastre do vôo 1907. Entre os 154 passageiros mortos estava o seu sogro, Mauro Romano. Gois experimentou as dificuldades a que as pessoas aflitas são submetidas nessas horas para obter migalhas de informações e o desagradável, e às vezes agressivo, assédio da imprensa que busca informações e histórias.

Seu relato:

‘Soube na noite de sexta-feira por minha mulher, a também jornalista Débora Thomé, que meu sogro estava no vôo 1907. Desde então, além da dor da tragédia, passamos a enfrentar o pior cenário possível para quem busca alguma informação: a escassez de notícias oficiais e o excesso de especulações por parte da imprensa e de algumas autoridades.

Essas especulações chegaram ao auge quando, no sábado, algumas emissoras de TV e sites de notícias informaram que haveria sobreviventes. As notícias eram creditadas ao secretário de Saúde do município onde o avião caiu e até a fontes da Infraero. Sabendo que não eram informações oficiais, eu e minha mulher tentávamos explicar ao resto da família que ainda era cedo para comemorar. Infelizmente, estávamos certos.

Desde o início da tragédia, ficou claro para mim também que às vezes nós, jornalistas, temos a mesma sensibilidade dos agentes funerários na hora da morte.

No saguão do aeroporto, enquanto esperava longamente por alguma confirmação por parte da Gol, fiquei separado de meus colegas jornalistas apenas por uma fita. Alguns deles corriam apressadamente em cima dos familiares com câmeras e flashes armados em busca de uma imagem. Outros, ainda que a distância, riam e brincavam entre eles, enquanto esperavam que algum familiar se dispusesse a falar.

Houve também quem, nos dias seguintes, ligasse insistentemente para a casa de minha sogra em busca de entrevistas, mesmo já tendo ouvido que a família não tinha condições de falar naquele momento.

Apesar disso tudo, continuo acreditando que o papel da imprensa nesse momento é importantíssimo. Tanto que muitos familiares procuravam voluntariamente os jornalistas para reclamar da falta de informações. No entanto, pude perceber, na prática, que nem sempre respeitamos alguns limites.

Desse episódio, tirei uma lição que nunca vou esquecer. Buscamos tanto a objetividade jornalística e o distanciamento crítico que, às vezes, acabamos também por perder a sensibilidade e, pior, o respeito ao drama de quem passa por uma tragédia como essa. Sem falar na busca acrítica pela informação exclusiva, que, num momento assim, pode só aumentar a angústia de quem está do outro lado.’”