Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa como agente histórico

Os textos aqui publicados resultam das discussões apresenta das ao longo do seminário História e imprensa: representações culturais e práticas de poder, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) entre os dias 2 e 6 de junho de 2003. O even to, promovido pelo Centro de Ciências Sociais e pelo Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas, contou com o apoio de diferentes instâncias da universidade: o Departamento de Pesquisa da Sub-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa, o Departamento de Extensão da Sub-reitoria de Extensão e Cultura e o Centro Biomédico. Deve-se ressaltar, ainda, que o encontro marcou o início das atividades do bicentenário da implantação da imprensa no Brasil, que ocorrerá em 2008. A Uerj associa-se a outras instituições que também se organizam para a celebração dos duzentos anos, como a Rede Alfredo de Carvalho, constituída por professores, jornalistas, pesquisadores e estudantes a fim de incentivar pesquisas, publicações e eventos para festejar a data.

O evento inspirou-se em fatores institucionais e intelectuais. De um lado, a Uerj tem se integrado à temática da imprensa por meio da criação do Centro de Cidadania Barbosa Lima Sobrinho, da participação na Rede Alfredo de Carvalho e da constituição de uma comissão encarregada de estruturar as atividades comemorativas dos duzentos anos de história da imprensa, composta por professores de áreas diversas e pelos organizadores deste livro. De outro, abrange grupos de pesquisa e projetos individuais que trabalham com história da imprensa em suas diversas unidades acadêmicas, especialmente no Departamento de História. Tal fato já resultou na organização de evento e subseqüente pu blicação do livro História e imprensa: homenagem a Barbosa Lima Sobrinho – 100 anos, organizado por Lúcia Maria Bastos P. Neves e Marco Morel (Rio de Janeiro: IFCH/Uerj, 1998).

O encontro promoveu um diálogo que se vem fazendo intenso, não só interunidades, e permitiu também a ampliação das dimensões em torno do tema história e imprensa, à medida que buscou outros par ceiros para além dos muros da instituição.

História e imprensa: representações culturais e práticas de poder encontra-se também no centro dos debates de renovação historiográfica, com destaque para as abordagens políticas e culturais. O redimensionamento da imprensa como fonte documental – na medida em que expressa discursos e expressões de protagonistas – possibilitou a busca de novas perspectivas para a análise dos processos históricos. Dessa forma, superou-se a perspectiva limitada de identificar a imprensa como portadora dos ‘fatos’ e da ‘verdade’. Deixaram-se também para trás posturas preconcebidas, que a interpretavam, desdenhosamente, como mero veículo de idéias ou forças sociais, que, por sua vez, eram subordinadas estritamente por uma infra-estrutura socioeconômica.

Em estudos recentes, a imprensa tanto constitui memórias de um tempo, as quais, apresentando visões distintas de um mesmo fato, servem como fundamentos para pensar e repensar a História, quan to desponta como agente histórico que intervém nos processos e episódios, e não mais como um simples ingrediente do acontecimento, no dizer de Robert Darnton e Daniel Roche.

Imprensa abolicionista

O livro tem como objetivo mapear as principais linhas de produção historiográfica voltadas para o tema história e imprensa, no Brasil, levando em conta novas pesquisas documentais e recentes perspectivas teóricas e metodológicas de abordagem, surgidas no âmbito da renovação historiográfica das duas últimas décadas. Aqui se analisam as relações entre estudos históricos e imprensa, destacando dois eixos principais – representações culturais e práticas de poder. Para tal, está dividido em quatro partes.

A primeira reúne capítulos que enfocam a relação da imprensa e das identidades políticas, centrando-se no Brasil imperial. Inicialmente, João Paulo G. Pimenta mostra como o periodismo na província Cisplatina, surgido e fomentado pelo governo luso-brasileiro a partir de 1821, além de procurar viabilizar o exercício administrativo da nova entidade política, contribuiu para a criação de práticas políticas e de uma base discursiva e ideológica que justificariam e legitimariam a dominação sobre a região. Em seguida, Wlamir Silva analisa como as elites políticas liberais mineiras, em meados do Primeiro Reinado, construíram uma rede de periódicos que se difundiu pelas vilas mais significativas da província, tendo como objetivo construir uma ação pedagógica liberal que afirmasse sua identidade política em embates doutrinários, ideológicos e simbólicos, conquistando o consenso ativo de parte significativa da sociedade.

Marcello Basile aborda a imprensa do Rio de Janeiro como um mecanismo de ação política dos liberais moderados, liberais exaltados e caramurus, que disputavam o controle do poder e do emergente espaço público da Corte durante as regências trinas (1831-1835), utilizando-se de jornais e panfletos para dar forma e divulgar seus diferentes projetos políticos perante uma incipiente mas já ativa opinião pública. Silvia Carla Pereira de Brito Fonseca detém-se na imprensa fluminense no início do período regencial, para analisar a herança do ideário republicano a partir da definição de um campo semântico próprio, estabelecido pelos grupos que formavam essa sociedade.

Gladys Sabina Ribeiro, avaliando as posições políticas de diversos jornais da Corte do Rio de Janeiro, da Independência ao período regencial, estuda a liberdade na condição de autonomia, relacionando esse princípio do direito natural às questões decorrentes da definição da cidadania e da adesão à causa nacional. Humberto Fernandes Machado retoma a imprensa abolicionista para demonstrar de que modo, por meio de seus textos, as elites intelectuais preocupavam-se com a construção da nação do período pós-abolição, indicando como seria inserido o ex-escravo nesse contexto, ao se tentar impor padrões de comportamento a esse novo ‘cidadão’, de acordo com os ideais de civilização e progresso.

Estado Novo

Na segunda parte, as indagações são sugeridas por meio de um passeio no mundo da cultura e da sociedade. Maria Beatriz Nizza da Silva, com base na gazeta baiana Idade d’Ouro do Brasil, observa, de um lado, as mudanças urbanas e o surgimento de novos espaços públicos na Bahia; de outro, as novas formas de sociabilidade e de convívio que não suprimiram, contudo, a quantidade de festas religiosas realizadas nos espaços tradicionais. Marcus J.M. de Carvalho examina como o discurso racionalista, propagado pela imprensa oitocentista, fatalmente transbordaria para o espaço doméstico, trazendo à tona a noção do que deveria ser uma família também civilizada. Em sua visão, na retórica liberal o domicílio tornou-se uma metáfora para a pátria.

Numa nova perspectiva de abordagem da história econômica, situam-se os trabalhos de Théo Lobarinhas Piñeiro e Carlos Gabriel Guimarães. O primeiro, no contexto da crise do Souto, a grande crise financeira e a mais profunda adversidade comercial do século XIX no Brasil, discute o papel da imprensa como veículo das posições assumidas pelos grupos sociais, além de estudá-la como instrumento de pressão dos setores organizados em defesa de seus interesses no governo, especialmente dos negociantes da praça do Rio de Janeiro. O segundo debruça-se sobre a imprensa portuguesa na época do Setembrismo, investigando a questão das finanças públicas, particularmente da defesa de um projeto preconizado pelo jornal O Correio, no período 1836-1838.

Ariane P. Ewald, Aurea Domingues Guimarães, Camila Fernandes Bravo e Carolina Bragança Sobreira, em outra visão, trabalham as crônicas folhetinescas, publicadas nos periódicos a partir dos meados do século XIX, a fim de evidenciar a relação entre o texto produzido, a realidade exposta e seu autor, desvelando laços de sociabilidade e de interações sociais, refl etindo ainda sobre as práticas culturais de uma época e o processo de formação da subjetividade. Sandra M.L. Brancato estuda como a imprensa portuguesa interpretou o golpe de Getúlio Vargas, que instituiu o Estado Novo no Brasil. Em sua visão, os articulistas lusitanos, muito envolvidos com as questões políticas de seu país, de modo geral fizeram uma leitura dos acontecimentos brasileiros a partir de identidades com a situação da política portuguesa.

Representante ‘do povo’

A terceira parte concentra-se nas relações entre imprensa, cultura e política, por intermédio de estudos elaborados por pesquisadores da Fundação Casa de Rui Barbosa, que em seu Setor de História voltam-se para a temática. Caminha-se desde a atuação de José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, que, na visão de Isabel Lustosa, foi o panfl etário mais radical contra a ‘tradição gálica’ e a ilimitada liberdade de imprensa, no início da construção do Império brasileiro, situando-se como o fiel defensor do Trono e do Altar, até a imprensa dos primeiros anos da Regência, por meio da qual Ivana Stolze Lima aborda as lutas em torno da identidade e da cidadania, experienciadas nas ruas da cidade do Rio de Janeiro por diferentes segmentos da população urbana, constituindo o que pode ser definido como uma linguagem racial da política.

Em seguida, os trabalhos mergulham no século XX, permeando a história cultural e a história política. Monica Pimenta Velloso, baseando-se nos pressupostos da história cultural, propõe a análise das revistas literárias e das semanais ilustradas (1900-1920), que circulavam no Rio de Janeiro, centro do debate intelectual, como veículos diferenciais do moderno, em função do público leitor. Antonio Herculano Lopes mostra que o Jornal do Brasil na virada para o século XX nasceu como projeto de intelectuais monarquistas, destinado a resistir à República no plano das idéias, mas, após sua reabertura, com a posse de Prudente de Morais, inaugurou uma nova fase, caracterizada por forte mudança de linha editorial, tornando-se menos abertamente político e adotando postura de legítimo e natural representante do povo. Joëlle Rouchou analisa a trajetória pública do jornalista Samuel Wainer, personagem importante da imprensa brasileira, que, ao longo de quase meio século, confundiu-se com fatos de extrema relevância da história política brasileira.

Cenário de representação

A derradeira parte revisita a própria noção de história da imprensa, que deixou de limitar-se ao jornalismo e às publicações periódicas para incluir um conceito mais amplo de comunicação, necessário em função da vertiginosa transformação tecnológica dos últimos anos. Apresenta, assim, a análise das mídias e representações. Ana Maria Mauad deslinda o século XX para retratar a invenção do Brasil contemporâneo, utilizando-se da fotografia de documentação social, a princípio associada às agências governamentais e, a partir dos anos 1930 com a modernização técnica da imprensa, às agências internacionais. As fotografias compõem um catálogo no qual surge uma história redefinida pelo estatuto técnico próprio ao dispositivo da representação: a câmara fotográfica.

Lená Medeiros de Menezes discute os elos complexos entre mídia e representações, a partir da pesquisa de importante mito de combate, o confronto entre civilização e barbárie, recorrente ao longo dos séculos, apropriando-se de notícias e depoimentos publicados na grande imprensa por ocasião da Revolução Bolchevique de 1917. Lia Calabre, por meio da relação entre rádio e política, analisa do papel do jornalismo radiofônico na política nacional dos anos 1950, tomando como estudo de caso o programa Parlamento em Ação, nos microfones da Rádio Globo, do jornalista e político Carlos Lacerda, opositor do governo de Getúlio Vargas. Carla Siqueira, voltada para o mesmo contexto histórico do segundo governo Vargas, utiliza os jornais Última Hora, O Dia e Luta Democrática como intermediários entre o público e os líderes políticos aos quais estavam ligados (respectivamente, Getúlio Vargas, Ademar de Barros, Chagas Freitas e Tenório Cavalcanti), demonstrando que a linguagem sensacionalista presente nesses jornais foi elemento fundamental ao exercício do papel de ‘defensores do povo’, ‘encarnado’ pelos três veículos.

Ana Paula Goulart Ribeiro aborda as profundas transformações na imprensa brasileira, sobretudo carioca, ao longo das décadas de 1950 e 1960, com o objetivo de mostrar que a modernização e a concentração das empresas e dos textos, além da profissionalização dos jornalistas, serviram para constituir um ideário sobre o que era o jornalismo e qual sua função social. Sonia Wanderley, utilizando a televisão como cenário de representação política, analisa de que forma sua programação auxiliou a elaboração de representações globais e totalizantes que, ao promover a constituição/consolidação de um imaginário coletivo, tornaram-se peça efetiva e eficaz no exercício efetivo do poder e no controle da vida social, no contexto histórico caracterizado pelo autoritarismo da ditadura militar.

Construção peculiar

Para esta edição foram adotados os seguintes critérios normativos, além dos habituais padrões editoriais: atualização ortográfica dos títulos de periódicos que não mais existem e de títulos de livros antigos, além de trechos reproduzidos de ambos, e preservação da forma original do uso de maiúsculas e minúsculas em citações de documentos; salvo raras exceções, os antropônimos estão grafados conforme enciclopédia organizada por Abrahão Koogan e Antônio Houaiss (Rio de Janeiro: Edições Delta, s/d). Os textos dos capítulos foram entregues para publicação em dezembro de 2003.

Assim, os especialistas de áreas distintas do conhecimento, oriundos de diversas instituições acadêmicas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, ao participarem do seminário História e imprensa, com uma série de comunicações variadas e oportunas, dotam agora, por meio deste livro, as questões aqui esboçadas, elas próprias, com o caráter de palavra impressa. Abrem também novas perspectivas de abordagem em relação tanto à história da palavra impressa quanto ao papel da imprensa na construção da peculiar cultura política brasileira.