Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A falência múltipla dos órgãos de governo

O apagão aéreo não é só um problema de verbas, nem de pessoal, nem de más condições de trabalho. É tudo isso e muito mais: é um enorme problema de gerência. O governo está despreparado para essa tarefa e nem sequer tem uma clara percepção do assunto. Tem-se discutido a crise conjuntural. Dinheiro foi liberado para a compra de novos equipamentos. Mas não se cuidou da questão de fundo. O governo está diante de algo tão grave – e tão surpreendente, para as autoridades mais altas – quanto o apagão elétrico de 2001.

Com observações como estas, a jornalista Claudia Safatle, em sua coluna de sexta-feira (8/12) no Valor, mostrou a dimensão econômica e política do assunto. Há cinco anos, a crise de energia deixou claro, para quem não havia percebido, um gravíssimo entrave ao crescimento econômico. A baderna no espaço aéreo, evidenciada a partir da estúpida morte de 154 pessoas, é outro limite de enorme importância: um país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados não pode funcionar sem uma bem estruturada aviação civil.

Desde o desastre com o Boeing da Gol, a imprensa tratou da crise aérea quase exclusivamente nas seções destinadas ao noticiário geral. Tudo bem: essa é a forma de cuidar do tema no dia-a-dia. Poucas histórias foram tão importantes, nas últimas semanas, quanto a da criança que não pôde ganhar um fígado novo porque o médico ficou retido num aeroporto, a centenas de quilômetros do hospital. Mas uma história desse tipo, embora dramática, não dá a dimensão do problema. Jornais, emissoras de TV e de rádio tentaram, com entrevistas e cálculos, dar uma idéia dos prejuízos pessoais e econômicos ocasionados pelos problemas do tráfego aéreo. Com isso, também não foram além de um quadro conjuntural – dramático e assustador, mas insuficiente.

Ministro desinformado

A questão estrutural tem várias dimensões, indicadas no texto de Claudia Safatle. Controle do tráfego aéreo e defesa do espaço aéreo são funções diferentes e é preciso analisá-las com perspectivas diferentes. A segurança do tráfego pode ter, ocasionalmente, implicações militares, mas não é, por sua natureza, uma questão militar. Seu tratamento requer, portanto, critérios de outra ordem, e isso dá sentido à desmilitarização do controle. O risco tende a crescer quando os problemas de administração do tráfego se confundem com as questões internas das Forças Armadas. Isso é parte da crise aérea brasileira, segundo a jornalista.

Questões de administração e de política raramente são examinadas de forma direta nas seções econômicas da imprensa. Pauteiros, editores e repórteres foram forçados a dar um pouco mais de atenção a esses temas, nos últimos anos, por causa dos conflitos sobre o status das agências reguladoras. Mas é preciso ir muito além.

O sistema brasileiro de planejamento foi arrasado nos últimos 20 anos, desde o fim dos governos militares. O entulho autoritário ainda não foi totalmente removido, mas boa parte da competência gerencial foi perdida na reforma incompleta e meio sem rumo da máquina pública. O ministério da Defesa – este é só um exemplo – ainda não mudou plenamente os velhos esquemas de comando das três Forças. A desinformação do ministro Waldyr Pires evidencia esse fato. Mas a crise da máquina pública era visível muito antes da crise aérea. O apagão elétrico mostrou a falência do planejamento e da gestão noutra área do governo. Mas a falência é múltipla e isso é revelado no dia-a-dia do noticiário econômico.

Clareza didática

Só há pouco tempo o governo federal voltou a produzir estimativas confiáveis e respeitadas de safras de café. O desmonte do velho Instituto Brasileiro do Café (IBC) pode ter sido justificado, mas com esse desmonte foram dispersadas, quando não jogadas fora, competências acumuladas durante muitas e muitas décadas. Era preciso reformar a máquina estatal e até diminuí-la, mas não emburrecê-la.

A crise da defesa sanitária, evidenciada pelo ressurgimento da aftosa em Mato Grosso do Sul, no ano passado, foi atribuída principalmente à escassez de recursos. Mas essa explicação é incompleta. Embora isso não seja dito publicamente, fontes do ministério da Agricultura reconhecem a deficiência do serviço, no plano federal. O episódio ilustra, de fato, dois problemas, ambos igualmente importantes:

1. falta uma clara e inteligente fixação de prioridades para o uso de recursos do orçamento – por definição, escassos;

2. as verbas liberadas nem sempre são usadas com eficiência, porque as funções de linha estão mal estruturadas, são mal conduzidas e pessimamente controladas.

Restam algumas áreas de excelência na administração federal. O Banco Central é uma das poucas. A Embrapa e outros órgãos do ministério da Agricultura ainda conservam tesouros de competência, apesar da perda de pessoal, da esclerose de alguns setores e das tentativas de aparelhamento político. É possível encontrar outros exemplos, mas o quadro geral é muito ruim. Já foi muito melhor.

A deterioração foi produzida por governos de todos os matizes, nas últimas duas décadas. O esforço patético – e até agora infrutífero – do governo petista para produzir um plano para o segundo mandato ilustra com clareza didática a falência dos sistemas federais de planejamento e gestão. O apagão aéreo é parte desse quadro e é preciso incorporá-lo nas discussões sobre as possibilidades de crescimento econômico nos próximos quatro anos.

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Jornalista