A utilização eleitoral de 200 mortes e 1.500 feridos foi a gota d’água que fez transbordar a paciência de uma parte importante da população espanhola. Desde a manhã dos ataques aos trens em Madrid, quinta-feira (11-M), até a noite de sábado (13/3), o governo insistia em atribuir ao grupo separatista ETA a autoria do atentado [veja remissões abaixo]. Somente quando já haviam milhares de pessoas concentradas diante das sedes do Partido Popular, exigindo resposta para a pergunta ‘Quién ha sido?’, o ministro do Interior Ángel Acebes admitiu que ‘havia uma outra linha de investigação’. As razões da insistência estavam nas eleições do domingo seguinte.
Durante toda campanha eleitoral espanhola a ETA havia sido vendida como o dragão que ameaçava o país, alimentado pelo PSOE – e o PP, como São Jorge, a única salvação. Um atentado de al-Quaeda, além de acabar com a vida daquelas pessoas, destruía, também, o roteiro. A tentativa de estelionato eleitoral foi um tiro que saiu pela culatra e o partido da direita perdeu uma eleição tida como ganha, mesmo que sem maioria parlamentar absoluta.
Acostumado a manipular as informações visando sempre seus interesses, o governo espanhol não se deu conta de que a realidade não se rendia à sua vontade. E quanto mais insistia em distorcer a verdade, mais ela crescia e lhe devorava. Esse comportamento deixou patente a falta de princípios éticos da direita espanhola na condução das questões de Estado. Quitou as dúvidas que as pessoas ainda pudessem ter em relação às mentiras anteriores. Representou o fim da inocência no julgamento das ações do governo. O raciocínio simples que mudou o resultado das eleições foi no seguinte sentido: se essas pessoas são capazes de mentir sobre os cadáveres de 200 compatriotas, que dirá sobre as ‘armas de destruição massiva’ de Iraque ou sobre o derramamento de petróleo nas praias do Cantábrico.
Desta vez, o que fez a diferença foi a presença maciça da imprensa internacional, transmitindo ao vivo todos os detalhes dos atentados, todas as entrevistas coletivas das autoridades, e buscando informações para contrastá-las. O governo deparou-se com um tipo de cobertura a que não estava acostumado. Jornalistas fazendo perguntas incômodas, repórteres que não se conformavam com respostas escorregadias e que saíam da pauta determinada pelo esquema de imprensa do governo.
A cobertura a que se assistia pela BBC, que mobilizou um batalhão de jornalistas e equipes a Madri, pela TV5 francesa, pela RAI, ou pela cadeia CNN, nada tinha que ver com o que mostravam as emissoras espanholas, especialmente a TVE, a emissora estatal.
Como na aldeia global de McLuhan, a informação não tem mais fronteiras. Muitíssima gente pôde ver que, enquanto o ministro de Interior espanhol teimava em fazer as pessoas acreditarem na tese ETA, no resto do mundo não havia dúvida de que al-Qaeda estava por trás do atentado. Esta informação correu rapidamente por internet e as pessoas passavam umas às outras os endereços de páginas web dos meios internacionais de comunicação. A cada hora que passava ficava mais patente a distância entre a versão do governo e a realidade dos fatos. Os próprios jornalistas espanhóis se surpreenderam com esse tipo de cobertura e alguns órgãos locais passaram a também avanças sobre outras fontes de informação.
Favas contadas
O atentado ocorreu por volta das 7h30 de quinta-feira. A primeira manifestação oficial se deu às 12h, com o comparecimento do candidato do PP, Mariano Raroy, diante da imprensa para ler uma declaração condenando os ataques. Não citou ETA em nenhum momento, mas deixou subentendido que havia sido o grupo separatista basco e não respondeu a perguntas.
Às 13h é o ministro Ángel Acebes que se apresenta e, este sim, diz que não lhe cabia nenhuma dúvida de que a ETA estava por trás dos ataques. Disse que o grupo buscava fazer um massacre na Espanha e havia conseguido seus objetivos. Desqualificou as negativas do ex-líder do partido Batasuna, Arnaldo Ortegui, que desde as primeiras horas da manhã já havia dito que a ETA nada tinha que ver com esse atentado, sustentando que a autoria deveria ser buscada entre os ativistas islâmicos. Seu partido, Batasuna, foi posto na ilegalidade ano passado sob a acusação de ser o braço político da ETA. À época Ortegui era tido como o ‘porta-voz’ do grupo separatista; mas, agora, para negar o ataque, sua palavra não tinha valor. Sem citar diretamente a Ortegui, Acebes chamou de ‘miseráveis’ as pessoas que estavam fazendo o que chamou de ‘intoxicação midiática’, negando a tese oficial do governo.
Nos veículos de informação espanhóis de alcance nacional, até àquele momento não havia saído nenhuma referência à entrevista de Arnaldo Otegui negando a autoria a participação da ETA nos ataques. Somente os veículos do País Basco e de Catalunha, dentro do território espanhol, colocaram imagem e voz do ex-líder da extinta Batasuna no ar.
Essa é uma prática muito comum no jornalismo espanhol. Nem sempre o outro lado é considerado merecedor de ser escutado. Durante todo o processo de condução à ilegalidade do partido basco, nenhum de seus dirigentes teve suas opiniões levadas ao grande público. Nem os jornais se davam ao trabalho de entrevistar-lhes para contrastar as posições.
Um partido constituído dentro das leis vigentes, com milhares de votos, com representantes no Parlamento nacional, no Parlamento autônomo do País Basco e dirigindo diversas prefeituras, foi posto na ilegalidade com os votos da maioria absoluta detida pelo PP, o partido do governo. As únicas vozes ouvidas na ocasião foram as da direita, que propôs e defendeu a ilegalização. No caso do atentado, porém, foi a imprensa internacional que fez a diferença. Ortegui aparecia em todos os canais de informações das televisões por assinatura. E para desespero do governo espanhol, o resto do mundo não só dava voz ao porta-voz de Batasuna, como, também, lhe dava crédito.
Mentiras recorrentes
Às 14h, ao vivo para todo o mundo, o presidente de governo José Maria Aznar apresentou uma declaração institucional do Executivo com uma condenação veemente ao terrorismo. Só que, precavidamente, como já havia feito Raroy, não citava explicitamente a ETA em momento algum. Usava o mesmo vocabulário que costumava usar contra o grupo separatista basco, que sempre fazia questão de denominar como ‘bando terrorista’, para retirar-lhe qualquer legitimidade política. Suas palavras, contudo, poderiam ser aplicadas ao terrorismo de qualquer origem.
Aznar é um mestre da velha escola da esperteza. Defende-se atacando, desqualifica o adversário em vez de contestar suas teses, não economiza recursos sórdidos para impor suas posições. E, como dizem os espanhóis, joga a pedra e esconde a mão. Por suas declarações públicas, nunca poderia ser acusado de mentir. Porém, se de público não comprometia sua palavra, era longe das câmeras que utilizava toda sua veemência para tentar salvar a cara de governo, que temia os prejuízos eleitorais de um atentado de caráter islâmico.
Antes de se dirigir à nação, Aznar telefonou a todos os diretores dos principais jornais, emissoras de televisão e rádio do país para lhes garantir sua ‘convicção’ de que ETA era responsável pelo atentado.
‘Ha sido ETA, no tengas la menor duda’, disse textualmente o premiê a Antonio Franco, diretor de El Periódico, de Barcelona. Em artigo publicado na terça-feira (16/3), o jornalista relata que essas foram as palavras do presidente de governo no primeiro telefonema, realizado por volta de 13h30. Com a garantia presidencial, decidiu a manchete da edição extra que iria para as bancas pouco depois: ‘El 11-M de ETA’. Na página interna destacou: ‘El Gobierno acusa a ETA y califica de ‘miserable’ el rumor de que los autores podían ser islamistas’.
Franco explicou mais tarde que não lhe passava pela cabeça que o presidente do governo de seu país pudesse estar expressando uma posição da qual não tivesse a convicção formada pelas informações que detinha. O jornalista relata que Aznar lhe telefonou outra vez no final do dia, ratificou que havia sido ETA a autora do atentado e, segundo disse, lhe ‘pediu cordialmente que não se enganasse’.
Franco manifesta sua estranheza em relação ao fato de que o presidente de governo do Estado espanhol pudesse estar mentindo. Não estava recordando que a verdade nunca havia sido um bem valorizado na atual administração. Para relembrar apenas um dos episódios mais relevantes, Aznar e seus ministros passaram meses mentido a toda a nação sobre o vazamento de petróleo do navio Prestige nas costas de Galícia, norte de Espanha. Era o então vice-presidente Mariano Raroy o encarregado de dar ao público as informações sobre o caso. Sempre tentando minimizar a gravidade da crise, suas explicações eram desmentidas a cada dia pelas grandes quantidades de óleo cru que poluíam as praias galegas. Ainda assim o governo insistia que havia apenas três ou quarto pequenos furos no casco do navio afundado, que logo seriam sanadas. E desastre ecológico foi um dos maiores já registrado no mundo, ainda que não reconhecido em sua dimensão pelo governo.
E em relação às tristemente famosas ‘armas de destruição massivas’ de Iraque, nem compensa estender-se. Um ano depois do ataque já viraram paradigma de mentira de Estado. Mas isso podia parecer irrelevante quando havia duzentos cadáveres sobre os trilhos da estação de Atocha, Santa Eugenia e El Pozo, em Madri.
‘Fontes oficiais’
O processo de tentativa de manipulação não visava somente a opinião pública interna da Espanha, ainda que a prioridade fosse convencer os espanhóis a manter a intenção de votar no PP três dias depois.
Diante da cobertura ‘discrepante’ que os órgãos internacionais de comunicação estavam realizando, a Secretaria de Imprensa do palácio da Moncloa, sede do governo, telefonou, também na mesma tarde da tragédia, para todos os jornalistas estrangeiros credenciados no palácio. A recomendação era a mesma, insistir na versão da responsabilidade da ETA. Como argumento central, o governo afirmava que o grupo já havia tentado cometer atentados desse tipo tempos atrás, e que por isso, neste caso, só poderia ser ele o autor dos ataques.
Os telefonemas tiveram efeito devastadoramente contrário às intenções do governo. Serviram para fomentar no mundo a imagem de dirigentes de republiquetas. Oriundos de democracias fortes e consolidadas, com uma tradição histórica de imprensa livre, todos os jornalistas ficaram chocados com a tentativa de condicionamento da cobertura. O Círculo de Corresponsales Estrangeros de España denunciou em uma nota a atitude do governo.
Também a ministra de Assuntos Estrangeiros Ana Palácios atuou para difundir internacionalmente a versão da participação da ETA no atentado. Telefonou aos chanceleres de diversos países europeus pedindo-lhes que respaldassem a tese do governo espanhol. Na TV5 francesa, o chanceler daquele país confirmava, constrangido, o recebimento do pedido, numa entrevista na qual evitava comentar mais o assunto ‘para não avançar em questões eleitorais de Espanha’.
Ana Palácios também mandou, na mesma quinta-feira (17h25), um telegrama a todos os embaixadores espanhóis recomendando-lhes que trabalhassem pela versão oficial junto à imprensa e às autoridades dos países em que se encontravam. Afirmava que ‘forças políticas’ estavam empenhadas em confundir a opinião pública sobre a autoria da matança. Anexo ao telegrama, como prova da veracidade da afirmação, uma notícia da agência oficial EFE, com o texto da coletiva do ministro Acebes, na qual ele afirmava não caber nenhuma dúvida que havia sido ETA. Ou seja, o governo cria a versão oficial, a agência do governo publica e o próprio governo faz uso da notícia como prova de veracidade do ‘fato’.
O Comitê de Empregados da Agência EFE divulgou um comunicado na terça-feira (16/3), denunciando que nos três dias que se seguiram do atentado às eleições o noticiário da agência foi submetido uma censura rigorosa. Os textos foram manipulados com o intuito de atender os interesses eleitorais do Partido Popular. Diz a nota que EFE sabia, desde a mesma manhã dos ataques, que se havia um celular configurado em árabe numa bolsa-mochila que não explodiu; que havia sido encontrada uma camioneta com detonadores e uma fita cassete em árabe na estação de onde os trens partiram; e que entre os mortos estaria o cadáver de um dos terroristas.
Os jornalistas da agência informaram que foram proibidos de divulgar depoimentos e comentários de integrantes de qualquer dos partidos de oposição. Outra proibição, emitida pelo diretor de EFE Miguel Platón, foi a de divulgar qualquer notícia que não fosse proveniente das fontes oficiais. E para defender a agência das acusações, a diretora de Comunicação de EFE, Ana Osma, afirmou que não houve manipulação porque ‘todas as informações difundidas pela agência provinham sempre de fontes oficiais’.
Última pergunta
A estrutura de comunicação do Estado é grande e importante. A maior parte dos jornais, grandes ou pequenos, se socorre do noticiário da Agência EFE para complementar o que não pode ser coberto por seus repórteres. O mesmo passa com as emissoras de televisão e de rádio.
Os dirigentes dos veículos que integram o sistema de comunicação pública são nomeados pelo chefe do Executivo. Neste regime parlamentarista monárquico, o chefe do Executivo vem a ser o parlamentar que encabeça a lista do partido mais votado – em geral, o presidente do partido. Os dirigentes dos órgãos do Executivo são nomeados entre os quadros do partido do governo. Nesse cenário, acaba sendo quase ‘natural’ que os interesses do partido majoritário se confundam com os interesses do governo, e com o que deveria ser o interesse público. O governo passa a ser uma extensão do partido. Às oposições sobra muito pouca margem para exercer seu papel de fiscalização, especialmente quando o partido no poder tem a maioria absoluta de votos no Congresso e pode votar qualquer coisa o conhecido sistema de ‘rolo compressor’.
Já a responsabilidade dos meios privados de comunicação da Espanha nas manobras que visavam confundir os eleitores não é pequena. Existe, porém, um caldo de cultura que facilita, e muito, a atuação manipuladora de quem esteja no poder neste país. Para nós, brasileiros, que temos uma história de jornalismo de resistência, é difícil entender como funcionam as redações aqui – e por quê. Não notamos no material jornalístico a mesma liberdade de especulação sobre as informações como no Brasil – onde, muitas vezes se chega às raias da irresponsabilidade.
As notícias nos jornais espanhóis quase sempre são frias e limitam-se a relatar fatos ocorridos, com frases do tipo: ‘disse ontem que’ e abre aspas. São produzidas poucas matérias antecipando fatos e prevendo acontecimentos. As autoridades quase sempre fazem a pauta e não costumam ser questionadas em suas atitudes. Nas entrevistas, as perguntas são sempre muito cuidadosas, para não ferir suscetibilidades.
Nas coletivas sobre os atentados transmitidas pelas televisões não se ouviu nenhum repórter perguntar abertamente sobre al-Qaeda aos ministros do PP ou a Aznar. Usavam a mesma linguagem cheia de eufemismos que utilizava o governo. Perguntavam pela ‘outra linha de investigação’ quando queriam perguntar pelo terrorismo islâmico.
Na única coletiva em que Aznar se dignou a responder algumas perguntas, um repórter apresentou a seguinte questão: ‘Talvez este não seja o momento adequado para a minha pergunta mas, ao se confirmar a segunda linha de investigação, estaria o sr. disposto a admitir haver-se equivocado em alguma decisão de política exterior?’ Uma pergunta absolutamente esotérica para a massa de telespectadores, que queria saber se Aznar se arrependia de haver defendido a invasão do Iraque depois do atentado de al-Qaeda. Resposta de Aznar: ‘O sr. tem razão, este não é o momento’. E encerrou a coletiva.
Caso resolvido
Praticamente não existem jornais independentes em Espanha. Os maiores estão ligados aos partidos políticos. El Mundo é ligado ao PP e El País, ao PSOE. São bons jornais nas coberturas gerais e absolutamente tendenciosos na cobertura política.
No caso do atentado de 11-M, o papel mais importante de reação interna à manipulação coube à emissora de rádio Cadena SER, do grupo Prisa, que edita El País. Ela e o canal de televisão a cabo do mesmo grupo, a CCN-Plus, eram as vozes destoantes do amém geral. Apesar de os índices de audiência massivos pertencerem as emissoras estatais TVE-1 e RNE-1, parte do público tinha acesso a informações em que as versões originais eram recebidas com reservas. A debilidade dessas redes residia no fato de serem ligadas ao partido da oposição. Sua credibilidade estava sempre sendo posta em dúvida pelos representantes do governo, que ironicamente às acusavam de manipulação e distorção das informações. E a população ficava sem saber quem tinha razão.
A falta de pudor na tentativa de controlar a informação que o Partido Popular demonstrou deve ter servido para decretar o fim da inocência em Espanha. Até aqui se tinha como ‘normal’ que o partido no poder condicionasse a linha informativa dos veículos públicos, que se tornam assim órgãos oficiais do governo contra o interesse público. Até aqui tinha-se como natural que os veículos privados fossem alinhados com determinados partidos políticos, como órgãos auxiliares de propaganda. Daqui para frente, com a experiência vivida no método de contrastar informação e versões, que se viu possível, espera-se que o povo espanhol passe a exigir de seus meios de comunicação mais responsabilidade com os fatos e mais respeito com cidadão. E passe a exigir seu direito de ter acesso a uma informação veraz, que lhe permita fazer seu próprio julgamento e adotar suas decisões sem condicionamentos abjetos. Mesmo porque é uma ignomínia que tenhamos de discutir manipulação eleitoral da informação quando deveríamos estar lamentando a morte de 202 pessoas, estudantes e trabalhadores a caminho do trabalho.
Essas mudanças, na Espanha, não serão tão imediatas como o desejável. Na quinta-feira (18/3), o governo abriu o segredo de dois relatórios confidenciais de seu serviço secreto para tentar demonstrar que não manipulou a divulgação das informações sobre o atentado.
O ministro porta-voz Eduardo Zaplana afirmou que foram passadas à nação as avaliações recebidas dos órgãos de inteligência. Estes garantiam que a ETA havia cometido os atentados. Sua intenção era limpar a imagem de mentiroso do governo espanhol, que se havia consolidado em todo o mundo nesses últimos dias. O governo preferiu difundir a imagem de incompetente, com um serviço secreto que não sabe distinguir bascos de islamitas.
Para o jornal El Mundo, o caso está resolvido. Sua manchete de sexta-feira (19/3) foi: ‘El gobierno prueba que no mintió desclasificando documentos del CEI’.
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Jornalista, mestre em Comunicação pela UnB, doutorando em Jornalismo na Universidade Pompeu Fabra, Barcelona