BUSH vs. IMPRENSA
Quem vigia os vigias?
‘Jornal americano é acusado de ‘traição’ ao revelar violações de sigilo cuja legalidade é tão duvidosa quanto a dos tribunais de Guantánamo
Na sexta-feira 23 de junho, o jornal The New York Times publicou uma matéria sobre a violação do sigilo bancário por parte do governo dos EUA. Com o alegado objetivo de rastrear o financiamento do terrorismo, um programa do Departamento do Tesouro monitorava, desde 2001, transferências de dinheiro por todo o mundo. A Casa Branca confirmou a informação, obtida junto a cerca de 20 fontes relacionadas ao governo, na maioria preocupadas com os aspectos legais e de privacidade dessa política. Já em dezembro, o mesmo jornal revelara que a Agência de Segurança Nacional (NSA) colocava sob escuta telefônica milhares de cidadãos dos EUA, também em nome da ‘guerra ao terror’.
Mistério.
Por que interessa tanto bisbilhotar o Swift (escritório, na foto), se os terroristas usam outros meios?
No caso em pauta, Washington recorreu a um mecanismo obscuro conhecido como ‘intimação administrativa’, livre de controle externo, para acompanhar os 12,7 milhões de mensagens da rede internacional Swift (iniciais da Sociedade para Telecomunicação Financeira Bancária Mundial, em inglês), que abrange 7.800 bancos em 200 países e movimenta 6 trilhões de dólares por dia.
Outros jornais – incluindo The Washington Post, The Wall Street Journal e Los Angeles Times – publicaram matérias semelhantes no mesmo dia. O editor deste último justificou a reportagem como de interesse público, relevante para que os leitores possam avaliar a condução da ‘guerra ao terror’. Mas todos se decidiram depois de saber que o diário nova-iorquino iria em frente. Talvez a notícia tenha sido vazada pelo próprio governo, para privá-lo do ‘furo’.
No domingo, o presidente do Comitê de Segurança Nacional da Câmara, entrevistado pela Fox News, disse que pediria ao procurador-geral, Alberto Gonzalez, um processo criminal contra o jornal de Nova York. Esse deputado, o republicano Peter T. King, disse que as políticas antiterroristas e a segurança nacional haviam sido postas em risco ao se revelar esse segredo ‘em tempo de guerra’.
– Ninguém elegeu The New York Times para coisa alguma. E esse jornal pôs sua própria agenda esquerdista, elitista e arrogante acima dos interesses do povo americano. É um jornal reincidente, um criminoso serial.
Do ponto de vista dos aliados, a situação não é clara. O porta-voz do Departamento do Tesouro diz que os europeus foram informados e reagiram com ‘compreensão’. Mas o ministro da Justiça da Bélgica, sede do sistema Swift (embora parte da rede opere nos EUA), solicitou um relatório sobre a legalidade da ação estadunidense. O comissário europeu de Justiça queixou-se da falta de regulamentação: ‘Se houvesse uma legislação européia, os cidadãos estariam mais bem protegidos’. E o Partido Popular Europeu, federação de países conservadores no Parlamento Europeu, pediu um inquérito formal.
Já em 2003, preocupados com sua responsabilidade legal, os executivos do Swift pediram aos EUA para encerrar o acordo. ‘Até quando isso vai continuar?’, perguntou um deles. Concordaram em continuar depois da intervenção de altos funcionários, inclusive Alan Greenspan, e de um acordo que permitiria que representantes da empresa que administra o sistema trabalhassem ao lado dos funcionários da inteligência e bloqueassem as buscas que considerassem impróprias.
A ONG Privacy International, de Londres, reuniu queixas formais provenientes de 32 países – incluindo todos os membros da União Européia, Canadá, Hong Kong e Austrália – contra o Swift, por violar as leis européias e asiáticas de proteção do sigilo bancário, pois não houve aprovação por parte de autoridades desses países, que têm leis que proíbem suas empresas de transferir dados pessoais confidenciais a países sem uma proteção adequada à privacidade – o que hoje é o caso dos EUA.
Bush júnior atacou os jornais na segunda-feira 26 de junho, dizendo que a divulgação do programa era ‘uma vergonha’ e ‘um grave dano aos EUA’. A Fox News citou ‘analistas’, segundo os quais o Congresso ‘poderia querer’ mudar a lei para tornar mais fáceis futuros processos à imprensa. G. Gordon Liddy, executor da invasão do edifício Watergate, ordenada por Nixon em 1972, e hoje comentarista da Fox, era entrevistado pela rede e comparava o caso a publicar aos planos para o Dia D às vésperas do desembarque.
Engajado.
Com Nixon ou com a Fox, Liddy trabalha para o autoritarismo
Entretanto, o caso lembra menos o Dia D do que a invasão do Watergate. Se o programa de monitoramento foi útil para detectar movimentações financeiras a favor de terroristas, isso só ocorreu nas primeiras semanas ou meses após o 11 de Setembro. Para que esse monitoramento de legalidade duvidosa continuou por cinco anos?
Quando do atentado em Nova York, a própria Casa Branca anunciou de imediato que rastrearia as finanças do terrorismo. O Swift, bem conhecido do mundo financeiro, com site e revista, é um alvo óbvio. Só um amador o usaria: qualquer terrorista sério logo adotaria procedimentos mais seguros, como a chamada hawala (‘transferência’, no jargão bancário árabe): entrega-se uma quantia a um intermediário (hawaladar), que liga a um hawaladar em outro país para entregar, mediante um pequeno spread, o valor equivalente à pessoa que lhe apresentar certa senha, de maneira a contornar o sistema bancário formal e driblar qualquer controle estatal.
Baseado em laços de confiança pessoais, étnicos, religiosos ou de parentesco, o sistema é rotineiramente usado por exportadores, importadores, estudantes e trabalhadores migrantes e também é adequado ao custo relativamente baixo das ações terroristas. Os custos dos piores atentados dos últimos anos foram estimados em 10 mil a 50 mil dólares – salvo o de 11 de Setembro, avaliado em 500 mil dólares.
Em outras ocasiões, The New York Times fez o jogo do governo. Publicou e apoiou as matérias da jornalista Judith Miller (depois afastada), que apresentaram como fato a fraude das ‘armas de destruição em massa’ do Iraque e colaboraram com o vazamento do nome da agente Valerie Plame, ordenado pela Casa Branca para punir o ex-embaixador que desmentiu a farsa. Mas, neste caso, fez jus às expectativas de um liberal autêntico, como Thomas Jefferson:
– Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, eu não hesitaria um momento em preferir a segunda alternativa.
O monitoramento do Swift parece um caso de ‘medida de emergência’ transformada em rotina permanente, com objetivos muito mais amplos que os declarados, a saber a ampliação do poder de vigilância do governo estadunidense sobre nações, negócios e cidadãos de todo o mundo, sem controle internacional – ou nem sequer o do Congresso e do Judiciário do próprio país.
É parte da generalização do Estado de Exceção denunciado pelo jurista Giorgio Agamben no livro homônimo: desativação de determinações jurídicas, exclusão dos atos do governo do campo do direito e instauração de uma guerra civil legal.
O caso é análogo – ainda que menos extremo e geral – ao Estado de exceção proclamado pelo nazismo com o pretexto do atentado ao Reichstag, que durou até a derrota final do III Reich, ou ao AI-5, que usou pequenos atentados como pretexto para 11 anos de poder absoluto.
Mas é de forma ainda mais patente que, no caso presente, o ‘tempo de guerra’ foi estendido sem limite, pois a chamada ‘guerra ao terrorismo’ não tem fim concebível. Isso dá cobertura para perpetuar todo tipo de arbitrariedade – do ‘grampo’ generalizado de telefonemas e e-mails aos tribunais de Guantánamo (que a Suprema Corte por fim julgou inconstitucional em 29 de junho) e à recusa a aplicar a Convenção de Genebra a prisioneiros (igualmente rejeitada pela Corte na mesma data). E a denunciar e punir como ‘traidor’ quem se atrever a questionar tais medidas, mesmo se a sua suposta utilidade no combate ao terrorismo se tornou irrelevante ante o risco que pode representar para as garantias democráticas da Constituição dos EUA e a soberania das demais nações do mundo.’
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