Para muitos, o ano à beira de seu término representou uma travessia auspiciosa. Confesso ter algumas dificuldades para referendar tal avaliação, levando em conta as inúmeras ocorrências que, pelo menos quanto à ética, produziram desmoronamentos de proporções cujo desdobramento ainda não permite mensurabilidades confiáveis.
A introdução serve para recolocar, na pauta, até que ponto realmente a imprensa brasileira se portou de modo ostensivo contra as estruturas governamentais. Se, no Brasil, há quem julgue acentuada atitude antigovernista por parte da imprensa, honestamente, é hora de uma revisão desapaixonada. O que determina a sugestão – se é que cabe tal propósito – é a evidência do quanto de prudência a imprensa profissional tem adotado, no sentido de, sem deixar de informar, evitar corrosões mais intensas. Para tanto, fiquemos tão-somente com acontecimentos mais recentes. Refiro-me à crise do setor aeroviário e ao despudor da decisão tomada pela cúpula da esfera política quanto à elevação em 91% de seus ganhos salariais.
Imprensa equilibrada
Matérias de primeira página a respeito dos dois fatos não faltaram aos principais órgãos de informação do país. Houvesse da parte da imprensa a real intenção em atingir duramente o governo federal, sobrariam, em profusão, possibilidades para tanto. Em qualquer redação corre solto o discurso consensual quanto ao fato de que as vicissitudes mais agudas do país (sistemas rodoviário, aeroviário, portuário, ferroviário e energético, sem computarmos as habituais carências na educação e na saúde) remetem ao ferrolho imposto pela lógica do ‘superávit primário’, somado ao disciplinado pagamento do ‘serviço da dívida’. Daí decorrem radicais contingenciamentos, condição para uma economia engessada.
Sob tal quadro, tirando-se os excessos ‘antigovernistas’ da revista Veja e ‘pró-governistas’ da CartaCapital (a despeito de esta já haver merecido elogios em artigos anteriores), na média, a imprensa brasileira se comportou educadamente, sacrificando do noticiário tons de aspereza. Se virtude ou defeito, cada qual faça seu juízo. Refutável apenas é a idéia de que a imprensa nutre rancor pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Quem, ao contrário, avalia deveria exercitar maior experiência em âmbito internacional.
O mais próximo episódio da vida nacional – a autoconcessão de aumento dos congressistas, o que representa acréscimo anual de 173 milhões de reais – traduz o grau de sensatez da imprensa brasileira. Fosse o fato tratado efetivamente em bases jornalísticas autênticas e independentes, é provável que as ruas estivessem apinhadas de manifestantes levando a indignação ao grau máximo (ou não). É também crível a suposição de que as ruas permanecessem como estão.
Também aí, a imprensa sabe fazer a leitura e põe, no prato, o tempero a gosto do cliente. A imprensa percebeu que, no imaginário societário dominante, há uma certa tendência à absorção de ‘delitos’, uma espécie de ‘paisagem familiar’ na qual o presente escândalo logo será superado pelo seguinte e assim la nave va.
Alguns jornais de sábado (16/12), dentre os quais a Folha de S. Paulo, reproduziram depoimentos de parlamentares acerca da decisão. Na Folha (pág. A9), por exemplo, afora a atitude não menos vergonhosa daqueles que optaram pelo silêncio ou pela abstenção, há a declaração do deputado José Múcio (PE), atual presidente do PTB que afirma: ‘Se não tiver aumento, vai haver uma fuga de cérebros’.
Uma imprensa realmente autônoma não abdicaria de uma contra-argumentação na qual caberia pontuar a falácia do deputado. Afinal, a questão não é a de aumento e sim do quanto do aumento. Mais ainda falaciosa a parte final da ‘fuga de cérebros’. Quais serão os dotados cérebros da inteligência brasileira reconhecíveis entre os parlamentares, a ponto de tamanha regalia (fiquemos com essa palavra, em nome do bom tom) ‘merecerem’?
Não menos escandalosa foi a declaração da deputada Sandra Rosado (PSB-RN): ‘Não é salário, é subsídio. Eu sei das dificuldades que passo com o salário que recebo’. O articulista fica sem saber como a imprensa autônoma e crítica reagiria ante intensa condição trágica da deputada.
Não ficam de fora os ventos que sopram no litoral do Rio de Janeiro. Assim é que igual destaque deve ter o deputado Rodrigo Maia (PFL): ‘O importante é que não tenha impacto orçamentário’. Para esse caso, os jornalistas precisariam retornar ao ensino fundamental a fim de se reciclarem em aritmética. Precisa explicar melhor? Já o deputado Sandro Mabel (PR-GO) foi taxativo: ‘No meu partido só quem fala é o líder’. Para este, a imprensa crítica daria o recado: ‘A partir de hoje, o PR ocupará apenas uma cadeira parlamentar, a do líder’.
Contra-argumentação
Para evitarem-se injustiças, o articulista não pode deixar de mencionar o depoimento do deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL): ‘Acho que ganhar bem não faz mal a ninguém, não é desonra’. Que peça! O ‘dramaturgo’ (socialista), pelo menos, reconhece que ganha bem, diferentemente de sua colega de bancada anteriormente mencionada. É bom que o PSB chegue a um acordo entre seus próprios pares. Claro, não poderia faltar a contribuição do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), líder do governo na Câmara: ‘A tese é de que os três Poderes devem ter a mesma remuneração’. Eis aí douta, sábia, decisão. Se antes dois poderes aferiam ganhos mirabolantes, por que não mais um?
Também não deixou de surpreender a declaração do deputado Miro Teixeira: ‘Espero que seja a última vez que os parlamentares tenham de deliberar sobre os próprios salários’. A contra-argumentação cabível seria a de indagar por que, ao longo de tantas legislaturas, ainda é assim, considerando as décadas atravessadas pelo deputado. Mais incisivo, porém, ainda conseguiu ser o senador Demóstenes Torres (PFL-GO): ‘É justísssimo’, em coro mais brando, com o parceiro de legenda, o senador Efraim Morais (PFL-PI): ‘Eu acho justo’. Qualquer mortal pode achar qualquer coisa a respeito do que bem entenda (ou não entenda), não é?
Imprensa generosa
A matéria da Folha também recolheu as vozes da indignação. Nessa fileira, constam: a senadora Heloísa Helena (PSOL-AL): ‘É uma pouca vergonha. Qualquer pessoa de bom senso sabe o significado disso. É esculhambação’. Sintética, mas também patética. Afinal, da voz crítica se espera algo propositivo. O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) limitou-se, em franca retaliação ao depoimento do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a afirmar que ‘Teto não é piso’. Resposta complicada. Dá a entender que se ‘piso’ fosse ‘teto’ (ou ‘teto’ fosse ‘piso’), o aumento estaria justificado (ou não é isso?). Por fim, o deputado Henrique Fontana (PT-RS), líder do PT na Câmara: ‘A decisão não atende a razoabilidade da situação em que se encontra o país’. Nota-se no depoimento a prática da ‘etica relativista’. A ‘imoralidade’ decorre de circunstâncias e não do ato puro em si.
A reportagem soma aos depoimentos a notícia de que ‘um grupo liderado por Fernando Gabeira (PV-RJ) e Raul Jungmann (PPS-PE) quer questionar a constitucionalidade do reajuste de 91% no STF’. Aos questionadores, deve-se conceder o prazo para acompanhamento de seus respectivos atos, aguardando-se também que, se derrotados, não aceitem os futuros novos proventos. Assim, a ética do questionamento estará assegurada.
Creio que, com o quadro aqui apenas esboçado, se tenha, ao menos, pálida percepção do quanto a imprensa brasileira é generosa com os dirigentes do país. Os que reclamam, realmente, não conhecem mundo afora.
******
Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)