GOVERNO
A qualidade do diálogo
‘A oposição se diz disposta a conversar e o governo também. Falta, entretanto, dizer quais são as bases desse diálogo, cuja proposição, por enquanto, parece só uma maneira de ambos os lados ganharem tempo para ver como administram o ´day after` da derrubada da CPMF.
A administração em jogo é política, pois a gerência dos efeitos da perda de arrecadação cabe ao governo e não à oposição, conforme bem afirmou o ministro da Fazenda, Guido Mantega já no dia seguinte à decisão do Senado.
Ainda na madrugada da derrota, o ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, teve a elegância de telefonar ao líder do PSDB, Arthur Virgílio, propondo a aproximação. Em seguida, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso retribuiu o gesto de público, com uma nota em defesa do entendimento.
Mas o que pretendem as partes não está esclarecido. O ´entendimento` ainda é um chamamento vago, embora já com alguma indicação de que todos compreendem os malefícios da intransigência e da exacerbação de sentimentos tanto por parte dos vitoriosos quanto por parte dos derrotados.
Inclusive porque o andar dessa carruagem é que dirá quem de fato ganhou ou perdeu do ponto de vista que aqui nos interessa: o embate das forças políticas.
A dúvida será dirimida menos pelo conteúdo dos temas a serem tratados na mesa – se mesa de tratativas houver – e mais pela forma como irão se conduzir os principais personagens em questão.
O protagonista absoluto é o presidente Luiz Inácio da Silva. No quente da derrota, ainda na Venezuela, limitou-se ao óbvio, qualificando o episódio como ´coisa da democracia´.
Já ontem subiu o tom, mas ainda se manteve dentro do limite do razoável para o padrão das reações presidenciais a revezes.
É de se conferir se a moderação resistirá aos discursos de improviso, principalmente aqueles já direcionados aos palanques de 2008.
Se o presidente da República der asas aos insultos e lançar desafios à oposição para que se explique diante da sociedade, mostrará que não quer diálogo nenhum.
Ademais, correrá o risco de errar o alvo. Primeiro porque a classe média certamente se identificou com a derrubada da CPMF – e aí, pela primeira vez depois de muito tempo, a oposição teve a chance de restabelecer boas relações com esse eleitorado.
E, segundo, porque todas as avaliações, inclusive de governistas, apontam conseqüências bem mais amenas que aquelas apregoadas quando a guerra congressual ainda estava em curso.
Por parte da oposição há de se testar também sua capacidade de manejar a vitória. Se subir nos saltos da petulância, achando que está com a vida ganha e que a partir de agora empareda o governo quando bem entender, também mostrará que seu negócio é faca no peito.
Nesse caso, a disposição inicial ao ´entendimento` era só para fazer pose de responsável, se precaver de eventuais repercussões negativas e tentar aliviar as feridas internas por causa da posição divergente dos governadores.
A base de qualquer entendimento aceitável só pode ser a conversa institucional, de Poder para Poder, de partido para partido. O diálogo por si só não quer dizer nada.
É indispensável que tenha qualidade e, se possível, se estenda também às relações do Executivo com a Câmara dos Deputados, que paralisou os trabalhos para fazer a vontade do Planalto e saiu dessa história menor do que entrou.’
Requião pode fazer críticas na TV, diz juíza
‘O governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), pode continuar criticando adversários, imprensa e instituições públicas pela Rádio e Televisão Educativa (RTVE). A juíza federal substituta da 1ª Vara Cível de Curitiba, Tani Maria Wurster, negou pedido do Ministério Público Federal, que pretendia proibir o ´uso indevido da Rádio e Televisão Educativa do Paraná em sua promoção pessoal e por fazer ataques à imprensa, adversários e instituições públicas´. Para o Ministério Público, isso acontecia, sobretudo, na reunião com o secretariado, às terças-feiras, transmitida ao vivo.’
Wilson Tosta
TV Brasil cria órgão para punir governismo
‘Em sua primeira reunião, o Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), operadora da TV Brasil, decidiu ontem criar uma corregedoria para punir desvios de conduta dos funcionários e diretores, entre eles um dos mais temidos em instituições do gênero: o governismo. O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, eleito presidente do conselho, afirmou que a nova instância de controle, que não estava prevista, vai ser incluída no futuro regimento interno, que será discutido na próxima reunião, em 15 de janeiro.
O ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, integrante do conselho, minimizou a importância da proposta, mas Belluzzo mostrou que a considera fundamental para preservar a independência da TV Brasil. ´Vamos criar uma corregedoria´, disse. ´Houve uma longa argumentação em torno da função dela. Ela não se confunde com o ouvidor, com a ouvidoria, que faz parte da diretoria-executiva. É uma corregedoria, porque tem a função de aplicar sanções. A corregedoria tem a função de examinar casos concretos e aplicar sanções.´
Segundo ele, é preciso ter cuidado. ´Não podemos fazer censura prévia. Devemos sim controlar, em qualquer dos casos, da TV privada e da TV pública, o comportamento incorreto, quando houver parcialidade, quando houver viés, quando houver mau uso da fonte.` Belluzzo afirmou não estar falando de erros em reportagens, por exemplo, mas de coisas mais fundamentais. ´Ser parcial a favor do governo é grave´, frisou.
Previsto na Medida Provisória 398, que cria a EBC, o Conselho Curador foi empossado ontem, no Rio. Ele é formado por 15 representantes da sociedade e 4 ministros. Um vigésimo membro, representante dos empregados, ainda será eleito.
Belluzzo lembrou que a função do conselho não é administrar a TV pública – embora a MP 398 preveja que tem como função, entre outras, elaborar a linha editorial -, mas adiantou que criará comitês para acompanhar a programação. Um será específico para jornalismo, outro para cultura. ´Serão poucos, mas muito atuantes.´
VERBAS
A nova grade de programação também será submetida aos conselheiros. ´Não quero um Conselho Curador meramente formal, um conselho de abóboras´, declarou Belluzzo. Ele também é a favor de que a EBC receba as verbas que a sustentam de maneira automática, sem precisar passar pelo Executivo. E propôs a vinculação de uma parcela de um dos fundos que recebem recursos do setor de telecomunicações ao financiamento da EBC.
´Não preciso do presidente da República para nada´, disse Belluzzo, nomeado, para o conselho, assim como outros 14 representantes da sociedade civil, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. ´Se ele meter o bedelho, vou levar ao conselho. E ele não vai fazer isso.´
Quando lhe perguntaram se pediria demissão em caso de ingerência governamental, reagiu: ´Ah, mas rapidamente.` Ele lembrou que o Conselho Curador tem autonomia para demitir a diretoria-executiva. ´Um poder terrível, que espero não exercer.` Belluzzo também considerou bom que o Congresso tenha dois representantes no conselho, como está reivindicando. De acordo com ele, o conselho também discutirá a forma de nomeação dos sucessores dos atuais conselheiros.
DIVERGÊNCIA
Para Franklin, a idéia de corregedoria não é novidade em relação ao projeto original. ´A MP já dá poder ao conselho para demitir até o presidente da TV. Não tem nenhuma novidade, pode-se ter ouvidoria, corregedoria. Seria uma forma de organizar o processo de chegada de dúvidas, queixas, críticas, etc., que fosse tratado de alguma forma pelo conselho.´
O ministro afirmou que o fim da CPMF pode afetar o orçamento da EBC no ano que vem, de R$ 350 milhões. ´Mas vou brigar para ser mantido e acho que vai ser mantido´, contou.
Ele adiantou que o relator da MP na Câmara, Walter Pinheiro (PT-BA), quer incluir na proposta a destinação automática para a EBC de parte do dinheiro arrecadado pelo Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). ´Um dos problemas que a MP não conseguiu resolver bem é a garantia de um financiamento automático´, analisou. ´Isso é um problema porque não temos Orçamento impositivo, o Orçamento, no Brasil, é autorizativo.´’
MERCOSUL
O Estado de S. Paulo
Debate reinaugura estúdio da redação
‘O debate sobre o Mercosul reinaugurou o novo estúdio da TV Estadão. Construído em janeiro no sexto andar da sede do Grupo Estado, em meio às redações de O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e portal estadao.com.br, o estúdio está agora ampliado, com novas câmeras e iluminação, sala de controle e edição e ampla área envidraçada – que coloca jornalistas e entrevistados ´dentro` da redação.’
Carlos Marchi
Venezuela deve entrar no Mercosul?
‘O comportamento agressivo do presidente Hugo Chávez cria instabilidades para a América do Sul e pode inibir investimentos no bloco, se a Venezuela entrar para o Mercosul, defendeu o cientista político Carlos Melo, professor de sociologia e política do Ibmec São Paulo. O Brasil não pode impor cláusulas políticas e ideológicas para escolher seus parceiros e a Venezuela tem sido um grande parceiro econômico do Brasil, contra-atacou o sociólogo Aldo Fornazieri, diretor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo, no debate promovido quinta-feira pela TV Estadão.
Os dois defenderam, em comum acordo, no entanto, que os movimentos do tipo chavista são uma reação à secular exclusão de classes pobres na América Latina. ´Os países têm de fazer reformas´, cobrou Melo. ´A afirmação democrática na América Latina vai ser definida por um processo de conflitos e de instabilidades´, afirmou Fornazieri. Abaixo, os principais trechos do debate:
INGRESSO NO BLOCO
FORNAZIERI: Temos 1.600 quilômetros de fronteira com a Venezuela. Recentemente houve investimentos brasileiros de R$ 20 bilhões lá. E não há nenhuma ameaça, por parte do governo venezuelano, aos investimentos. Boa parte da indústria naval foi alavancada por compras do governo venezuelano. A Venezuela é, de fato, parceiro comercial. Se colocássemos cláusulas de ordem política e ideológica para definir parceiros, entraríamos em lógica absurda.
MELO: Os ambientes econômicos são baseados em instituições consolidadas, estáveis. Se você tem instabilidades, é natural, é do ser humano que haja retração. E há essa instabilidade quando a gente se refere à Venezuela. Até aqui não houve problemas com os investimentos brasileiros, mas há pouco tempo Chávez falou em estatizar os bancos espanhóis, por conta de um desacerto com o rei da Espanha. Eu não vejo essa garantia de que não terá instabilidades. E isso tende a inibir investimentos no Mercosul.
FORNAZIERI: A Venezuela não pode ser caracterizada como um regime ditatorial. Há um governo com viés autoritário, mas o próprio plebiscito demonstrou que não é uma ditadura. Tem voto universal, eleições periódicas e eleições competitivas, já que a oposição venceu as eleições. Estes três critérios, do ponto de vista da ciência política, são os que definem a democracia.
MELO: Simplesmente admitir a Venezuela no Mercosul traz risco muito grande. Minha observação não tem nada de ideológico, é pragmática, comercial. Você tem na Venezuela uma grande instabilidade. Que política podemos fazer? Podemos colocar o pé no freio e dizer: ´Olha, não é o patamar de organização institucional democrática que nós, Brasil, queremos para a América Latina.´
CLÁUSULA DEMOCRÁTICA
FORNAZIERI: A cláusula democrática prevê condutas democráticas, assim como qualquer fórum internacional prevê a defesa da democracia. Uma coisa são defesas de princípios; outra são as relações efetivas e reais.
MELO: Na questão da cláusula, me parece que há dois aspectos a considerar. Primeiro, se a cláusula não serve para nada, vamos retirá-la. Mas, se serve para alguma coisa, vamos obedecer a ela e redefini-la.
JUSTIÇA VENEZUELANA
FORNAZIERI:Cabe à Venezuela encontrar a autodeterminação. Reconheço a necessidade de estabilidade das instituições políticas para um bom ambiente econômico. Agora, uma coisa é o desejo, outra coisa é a realidade. São séculos de exclusão, em que a face do liberalismo político apareceu como a face do privilégio. A afirmação democrática na América Latina vai ser definida por um processo de conflitos e de instabilidades, porque o ingresso das massas pobres, atores eleitorais novos, trará para o plano institucional conflitos antes colocados no plano social e no âmbito econômico.
MELO: Os países têm de fazer reformas. Vendo a derrota da CPMF dá para perceber o quanto ficou caro não fazer a reforma política. Temos de trabalhar com o conflito, mas no sentido de construir pactos. O movimento bolivariano tem sentido de existir, embora parta de agenda anacrônica. A formação do poder popular se assemelha aos sovietes, quer dizer, não se caminha para a formação de diálogos. Imagine o quanto isso atinge a racionalidade de um investidor. Cria-se instabilidade que não é salutar. A reforma do Judiciário que Chávez fez foi intervenção em outro Poder.’
CULTURA
Italianos vivem desânimo coletivo
‘Todo o mundo ama a Itália porque é velha, mas continua glamourosa. Porque ali se come e se bebe muito bem, mas raramente alguém é gordo ou ébrio. Mas hoje, apesar de toda a adoração estrangeira, a Itália parece não se amar. O que persiste por aqui é o ´malessere´, o mal-estar, que implica um desânimo coletivo – econômico, político e social. Resumido numa pesquisa recente, os italianos se consideram, hoje, as pessoas menos felizes da Europa Ocidental.
´É um país que perdeu um pouco da motivação para o futuro´, disse Walter Veltroni, prefeito de Roma e possível futuro primeiro-ministro. ´O que há é mais temor do que esperança.` Na maior parte, os problemas são tão antigos que ninguém sabe como mudanças podem ocorrer, e se isso ainda é possível.
Há tempos a Itália mapeou seu caminho para pertencer à Europa, lutando com política fraturada, crescimento irregular, crime organizado e um sentido tênue de nação. A frustração aumentou, já que, em alguns casos, as fraquezas pioraram, enquanto o mundo externo supera o país. Em 1987, a Itália celebrou paridade econômica com a Grã-Bretanha. E agora a Espanha, que aderiu à União Européia em 86, pode ultrapassar a Itália.
O modo de vida italiano pouco tecnológico pode fascinar os turistas, mas o uso da internet e o comércio estão entre os mais atrasados da Europa, como salários, investimentos estrangeiros e crescimento. Pensões, dívida pública, gastos do governo estão entre os mais altos do continente. Dados mais recentes mostram uma nação mais velha e mais pobre. As empresas de pequeno e médio portes, no geral familiares, que durante muito tempo foram a espinha dorsal do país, lutam numa economia globalizada, em particular com a concorrência dos salários baixos da China.
Ronald Spogli, embaixador dos EUA com 40 anos de experiência na Itália, alerta que o país corre o risco de ver diminuído o seu papel internacional e suas relações com Washington. Os melhores amigos dos americanos, observou, são os parceiros comerciais, o que a Itália está deixando cada vez mais de ser. Com a burocracia e regras comerciais confusas, em 2004 os EUA investiram no país US$ 16,9 bilhões. Na Espanha, US$ 49,3 bilhões.
Há ligação entre o sistema político errante do país e a sensação de retrocesso. Pesquisa da economista italiana Luisa Corrado concluiu que o italiano é o povo menos feliz entre as 15 nações da Europa Ocidental. Os pesquisadores detectaram conexão entre a felicidade e diversos fatores, incluindo a confiança no mundo ao redor e, sobretudo, no governo. Na Dinamarca, a nação mais feliz, 64% das pessoas confiam no Parlamento. Na Itália, o índice é de 36%.
Dois livros de sucesso mostram desconfiança em relação aos grandes poderes que não pode ser controlada. A Casta vendeu um milhão de exemplares expondo os pecados da classe política italiana. Nem a presidência escapou – o gasto anual do gabinete é de US$ 328 milhões, quatro vezes o do Palácio de Buckingham. Camorra, que vendeu 750 mil cópias, trata da máfia napolitana. Os políticos, diz, deixam que a Camorra floresça, mantendo pobre o sul da Itália e tornando o crime organizado o maior setor da economia, segundo estudo recente.
Segundo Alexander Stille, professor da Universidade de Columbia e especialista da Itália, enquanto a economia cresceu, entre os anos 50 e 80, os italianos toleraram o mau comportamento dos líderes. Mas há anos o crescimento é lento e a vida está declinando. As estatísticas, hoje, mostram que 11% das famílias italianas vivem abaixo da linha de pobreza e 15% têm problemas para passar o mês com o salário recebido.
Os italianos raramente associam esta safra de líderes idosos à capacidade de mudança. São as mesmas pessoas que há mais de década negociam condições no poder. Em 2007, votaram pela saída de Silvio Berlusconi por não ter cumprido promessas de crescimento similar ao dos EUA e de oportunidades com base no mérito. Quando ele deixou o cargo, o crescimento econômico era zero.
O governo do primeiro-ministro Romano Prodi desapontou ao montar gabinete com 102 ministros. Prodi conseguiu avançar com dois pacotes de reformas e a economia está crescendo novamente. Mas os eleitores estão fartos e a oposição sabe disso. ´As pessoas começam a ficar furiosas porque têm um governo que não faz nada´, disse Gianfranco Fini, líder da Aliança Nacional, de oposição.’
Mística do ´made in Italy` pode ser a saída
‘Evidências da idade da Itália estão por toda parte. Na TV, as estrelas são enrugadas. Na cena política, o primeiro-ministro Romano Prodi tem 68 anos. ´Em todos os países os jovens têm esperança. Na Itália já não se espera mais nada´, disse Mario Adinolfi, de 36 anos, blogger e aspirante a político. ´A mãe mantém o filho em casa e lá ele fica, não luta. Se não luta, é impossível tomar o poder.´
Em setembro, os jovens romanos tiveram a notícia da morte do tenor Luciano Pavarotti, talvez o italiano mais famoso do mundo. ´Droga!´, berrou Federico Boden, estudante de 28 anos. ´Agora, só temos a pasta e a pizza!´
A Itália não parece se classificar como antes, em termos de grandeza. Não surgiu um novo Fellini, Rossellini ou Loren. No cinema, TV, arte, literatura, música, o que é feito raramente é considerado de vanguarda. Mas ela tem Ferrari, Ducati, Vespa, Armani, Gucci, Piano, Illy, Barolo – símbolos de classe e prestígio. Muitos acreditam que o futuro está na mística do ´made in Italy´.
O vinho foi o primeiro teste. Os produtores passaram da quantidade para a qualidade. A torrefadora Illy prosperou combinando qualidade e uniformidade, inovando métodos e estilo de apresentação. ´É aí que os italianos vão ganhar´, disse o presidente da companhia, Andrea Illy. ´Usando nossa força particular: beleza e cultura.´
Mas a indústria italiana depende de salários baixos, o que a torna vulnerável à concorrência da China. O alarme começou a soar há alguns anos, com o temor de que muitos dos setores italianos tradicionais – têxtil, sapatos, roupas – não poderiam competir. Muitos não conseguiram. Em Friuli Giulia, capital da fabricação de cadeiras, o número de empresas caiu de 1.200 para 800. ´De início, pensaram que a fase passaria´, disse Massimo Martino, diretor da Max Design, pequena empresa de móveis. ´Muitas fecharam porque não quiseram mudar.´
Algumas empresas aceitaram o desafio. A madeira é a matéria-prima principal da região, mas Martino criou cadeiras de plástico moldado. Outras perceberam que competir com a China em preço seria impossível. A meta passou a ser a qualidade e o caráter inigualável do produto italiano. Pietro Constantini, chefe de uma empresa de móveis da 3ª geração – fabrica móveis extragrandes para americanos -, criou linhas que vendem o estilo de vida italiano. ´Um russo, por exemplo, precisa ter carro alemão, relógio suíço e roupas italianas. Agora, está de olho nos móveis italianos.`
Para os céticos, o investimento estrangeiro, pesquisa e desenvolvimento e capital de risco ainda são baixos, assim como a competitividade em relação a outros países europeus. Mas os empresários italianos podem ser a saída. Alguns afirmam que a nova geração é outra peça importante, se não agora, quando os que estão no poder desaparecerem. São jovens educados, viajados e, como Beppe Grillo, ator e comediante, usam a internet para atrair as massas.
Na política, dois partidos de centro-esquerda se fundiram no Partido Democrata, cujo meta é superar a fragmentação que paralisa o sistema. Todos concordam que nova lei eleitoral precisa ser elaborada para dar mais campo de ação ao vencedor das próximas eleições, algo crucial para avançar com mudanças importantes.’
INTERNET
MySpace enfrenta liderança do Orkut com música e vídeos
‘O MySpace, que pertence à News Corp., do magnata australiano Rupert Murdoch, é o maior serviço de rede social da internet. Globalmente, tem 110 milhões de visitantes únicos por mês e, nos Estados Unidos, é o terceiro site em audiência, depois do Google e do Yahoo! No Brasil, a presença dele ainda é pequena. Segundo a ComScore, teve 306 mil visitantes únicos no País em outubro, comparados a 11,623 milhões do Orkut, que pertence ao Google.
Mas a meta da empresa é mudar essa situação. ´Passamos de 300 mil usuários brasileiros para 1 milhão, depois do lançamento da versão em português’, afirmou ontem Emerson Calegaretti, diretor-geral do MySpace Brasil, durante o anúncio oficial da entrada da empresa no País. O lançamento em beta (para testes) da versão em português aconteceu no fim de outubro.
Antes de ser contratado pelo MySpace, Calegaretti foi o primeiro funcionário do Google no Brasil. Ele alfinetou seu antigo patrão ontem, ao destacar a preocupação do MySpace com a segurança: ´Vamos colaborar ativamente com as autoridades. Não é desculpa sermos uma empresa americana.` As autoridades brasileiras enfrentaram dificuldades em obter informações sobre usuários do Orkut para a apuração de crimes virtuais. O Google chegou a argumentar que isso acontecia por ser uma empresa com sede nos Estados Unidos.
O MySpace planeja enfrentar o Google com música e vídeos. Existem 55 mil bandas e 221 cineastas brasileiros que divulgam seus trabalhos em páginas criadas no site. Na quarta-feira que vem, o MySpace vai promover em São Paulo um show da banda NX Zero. A apresentação, gratuita e exclusiva para os usuários do site, é chamada de Secret Show pelo MySpace. O local será divulgado somente na segunda-feira.
´Para conquistar usuários, o MySpace não precisaria vir para o Brasil´, afirmou Daniel Domeneghetti, presidente da consultoria DOM Strategy Partners. ´Mas a presença local é necessária para se aproximar do mercado publicitário.` A publicidade na internet deve movimentar R$ 470 milhões este ano, um aumento de 30% sobre o ano anterior. ´O Brasil concentra 70% da publicidade online da América Latina´, apontou Victor Kong, diretor do MySpace para a região. ´Foi lógico para nós iniciarmos uma operação no Brasil.`
O MySpace prepara uma versão ´light` do site, para as conexões lentas de internet que ainda existem no Brasil e em outros países em desenvolvimento. Também criou uma versão para celulares.’
EPISÓDIO HUMANO
Poesia que dói na prosa de Cecília
‘Entre 1929 e 30, Cecília Meireles escreveu uma série de artigos para O Jornal, importante periódico diário que circulou no Rio de Janeiro. Não se tratava, porém, da poesia que a tornou uma das principais autoras brasileiras – com aguda sensibilidade, Cecília sabia transportar as emoções que rodeavam seu cotidiano para o universo das palavras. Assim, aqueles artigos traduziam, em refinada prosa poética, a dor que a poeta sentia por viver um momento difícil: a convivência com a depressão do marido, o escultor e pintor português Fernando Correia Dias. Os textos estavam esquecidos até serem encontrados no início do ano e reunidos no volume Episódio Humano (176 páginas, R$ 35), que as editoras Batel e Desiderata lançam agora conjuntamente.
Em nenhuma linha o problema é exposto, mas Cecília consegue transformar a dor em algo quase palpável. ´Por causa da depressão, meu avô se enclausurava; assim, para enfrentar um problema que na época não tinha um tratamento adequado, para se consolar de sua incapacidade de fazer algo, Cecília escrevia´, comenta Alexandre Carlos Teixeira, neto da poeta e agente literário de sua obra.
De fato, a angústia que, para os leitores despontava apenas como inspiração para a poeta, surge em diversos trechos dos artigos, enigmáticos, codificando seu verdadeiro pesar. Sensações expressas em trechos como ´Tão longe andarás de mim que não poderei mais imaginar que algum dia estivesses perto´. Ou em ´Esperas intermináveis foram desfazendo o tênue elemento da tua figura. De que era feito teu rosto quando aparecia na minha memória? De nuvem? De cinza? De aroma?´. E ainda: ´Aprende-se a morrer.´
Apesar de identificados como ´crônica´, tais textos apresentam uma estrutura diferente. Nem sua linguagem é leve e descompromissada, como marca o gênero. Ao contrário – ali está, em prosa, a mesma densidade lírica e simbólica que Cecília utilizava em seus poemas.
Teixeira conta que os avós se admiravam e se amavam profundamente. Todas as figuras femininas na obra de Fernando Correia Dias tinham a mulher como musa inspiradora – é o caso do desenho que ilustra a capa de Episódio Humano, assim como do perfil que está na contracapa. ´Acredito que essa reunião de crônicas pode ser comparada a um dos livros mais famosos de Cecília, Cânticos´, diz Teixeira. ´No texto em prosa, ela exterioriza sua perplexidade, enquanto na poesia dos Cânticos ela parece incentivar o marido a não desistir.´
Uma última tentativa aconteceu em 1934, quando Cecília Meireles foi convidada pelo governo português a fazer uma série de conferências em cidades como Lisboa e Coimbra. O convite reanimou o casal, especialmente Correia Dias, na expectativa por voltar à terra natal. ´O efeito, porém, foi contrário´, conta Teixeira. ´Cecília foi muito festejada pelos portugueses, que não receberam com o mesmo calor seu conterrâneo.´´
O resultado foi trágico – de volta ao Brasil, Fernando aprofundou-se em sua crise até se matar, em 1935. As crônicas, portanto, terminaram como um testemunho de Cecília em seu ímpeto de eternizar seu presente. Em 1939, quando fazia dez anos do início de sua colaboração ao O Jornal, a poeta decidiu recuperar seus artigos e os organizou com a disposição de editá-los em livro. Preparou até uma introdução, em que revela uma dor persistente. ´Relendo-os, verifico, dez anos depois, que ainda me comovem essas páginas. Nelas está minha vida, em toda a sua pureza, numa fase amargurada de construção. Amo essa tristeza conformada da minha disciplina´, datilografou ela.
A introdução, assim como 20 recortes, foram encontrados em sua biblioteca, ainda hoje intacta, no casarão onde morou, no bairro do Cosme Velho, no Rio, até 1964, quando morreu dois dias depois de completar 63 anos. ´Em sua recomendação, Cecília comentou ainda que desconfiava da existência de outros artigos, que encontramos nos arquivos da Biblioteca Nacional´, conta Carlos Barbosa, editor da Batel, que, entusiasmado com a descoberta, assumiu a edição da obra em livro.
Cecília Meireles comentou ainda, em sua carta, que excluía do conjunto os dois primeiros textos da série (Roerich e Taj Mahal), considerados por ela ´peças de circunstância´. Pelo mesmo motivo, Barbosa e Teixeira não relacionaram O Homem-Grande, encontrado na Biblioteca Nacional. ´Embora não estejam editados no grupo dos textos aprovados por ela, decidimos incluir os três textos no final do volume, pois se tratam de escritos inéditos em livro´, explica Barbosa.
Reaberta depois de conturbada disputa familiar, a biblioteca de Cecília Meireles guarda, no entender de Teixeira, mais tesouros inéditos. ´Ela cuidava bem de sua obra, deixando até sugestão de ilustração para a capa dos futuros livros.´’
MUSAS INTELECTUAIS
Uma expert em sedução, traição e noites insones
‘Nossas musas intelectuais estão morrendo. E, se não estou sendo ingrato com outra(s), todas as minhas já se foram: Mary McCarthy em 1989, Susan Sontag em 2004, Muriel Spark e Barbara Epstein no ano passado; agora, Elizabeth Hardwick. Tirante a romancista escocesa, eram todas amigas íntimas, divas do mundo literário nova-iorquino, ligadas ao surgimento e à consolidação internacional da revista The New York Review of Books.
Pela excêntrica taxonomia inventada por Jaime Ovalle e Augusto Frederico Schmidt, com o nome de gnomonia, Sontag e Hardwick eram duas autênticas ´parás´, quer dizer, duas pessoas ágeis e brilhantes que onde chegassem venceriam. Sontag nasceu e estudou no Arizona, terra de caubóis; Hardwick cresceu no Kentucky, rincão da galinha frita do coronel Sanders, colado ao retrógrado sul dos EUA.
(Com todo respeito ao Kentucky e seus filhos mais ilustres – Abraham Lincoln, Kit Carson, Muhammad Ali -, por lá vingaram mais artistas de música e cinema – W.C. Handy, Lionel Hampton, Wilson Pickett, Irene Dunne, George Clooney – do que escritores e intelectuais. Quem mais, além de Hardwick, podemos acrescentar ao romancista Robert Penn Warren, ao poeta e crítico Allen Tate e ao jornalista gonzo Hunter Thompson?)
Crítica, ensaísta, ficcionista, professora, jurada dos mais importantes prêmios literários dos EUA, Hardwick morreu no dia 2, num hospital de Manhattan, vítima de uma infecção que não teria resultado fatal se ela não fosse uma senhora de 91 anos. Sua morte foi ignorada pela nossa imprensa diária. Quem mandou Lizzie (era assim que gostava de ser chamada) dedicar-se aos livros e à circulação de idéias, em vez de ao show business?
Sic transit ignorantia mundi. Só Daniel Piza registrou, em seu blog, o centenário do grande historiador cultural Jacques Barzun, ocorrido no último dia 30. Registrou e festejou, já que Barzun, como Niemeyer, continua vivo e produtivo. Seu último estudo, Da Alvorada à Decadência, traduzido pela Campus em 2002, resume, oblíqua e casualmente, as razões pelas quais seu centenário e a morte de Hardwick passaram em branco pelo radar de nossa mídia. Esgotado, precisa ser lido no original; mesmo caso do único livro de Hardwick publicado no Brasil, o romance autobiográfico Noites Insones, de 1979, lançado quatro anos atrás pela ARX.
Como não li seus romances anteriores (The Ghostly Lover, um Bildungsroman sobre a educação sentimental de uma jovem de 16 anos, escrito ainda em Kentucky, publicado em 1945 e seu passaporte para a histórica revista literária e política Partisan Review; The Simple Truth, 1955, sobre um caso de polícia ocorrido em Iowa, por ela acompanhado de perto), não me sinto autorizado a clamar por sua tradução em detrimento de sua obra ensaística. Esta, sim, é a jóia mais reluzente do espólio literário de Hardwick. E aí, prezados editores, o que cair na rede é peixe.
Distribuídos em quatro volumes, entre 1962 (A View of My Own, ensaios sobre literatura e sociedade) e 1998 (Sight Readings, uma série de reflexões sobre a literatura americana), talvez os dois do meio (Seduction and Betrayal, 1974; e Bartleby in Manhattan and Other Essays, 1983) tenham mais appeal, na medida em que tratam, respectivamente, de mulheres, reais e imaginárias, vitimizadas pelo donjuanismo e a traição, e de uma variadíssima gama de autores (Herman Melville, Ring Lardner, Christopher Isherwood, Thomas Mann, Nabokov, Simone Weil) e figuras públicas (Martin Luther King, Lee Oswald, John Reed). O primeiro é dedicado a Barbara Epstein; o segundo a Robert Silvers. Dois preitos de amizade, com endereço certo.
Barbara e Silvers foram os fundadores, com Hardwick e Jason Epstein (então casado com Barbara), da New York Review of Books, criada em 1963 para suprir a ausência nas bancas do suplemento de livros do New York Times, como os demais jornais da cidade paralisado por uma greve que durou 114 dias. Deu no que deu, e os mais surpresos foram os próprios fundadores da publicação.
Barbara era a guardiã-mor do estilo elegante mas simples, sem cacoetes acadêmicos, da revista. Achava, com razão, que ´a complicação desnecessária costuma ser um sinal de que algo está sendo escondido pelo autor´. Extremamente culta e avassaladoramente sensata, conversava de igual para igual com qualquer dos colaboradores, sugerindo-lhes cortes e alterações, inclusive de pontuação. E quase sempre estava com a razão, reconheceu Gore Vidal, num breve comentário a propósito de sua morte, em 16 de junho de 2006.
Barbara não teve um relacionamento fácil com Jason e depois se casou com o magistral repórter Murray Kempton, colaborador da Review. Merecia, sem dúvida, a dedicatória de Seduction and Betrayal, um desfile de mulheres atormentadas, como Emma Bovary, as irmãs Brontes, Hester Prynne (a infausta heroína de A Letra Escarlate), a Nora de Casa de Bonecas, Sylvia Plath, Zelda Fitzgerald, Virginia Woolf. Mas a principal ´homenageada` da coletânea deveria ser a própria Hardwick, que sofreu o diabo com o poeta Robert Lowell, causa das muitas madrugadas que passou em claro e retratou, sem baixarias, indiscrições e ressentimentos, em Noites Insones.
Hardwick e Lowell conheceram-se no verão de 1946, numa festa no apartamento de Philip Rahv, editor da Partisan Review, no Greenwich Village. O casamento do poeta, um dos mais notáveis do século passado, com a escritora Jean Stafford (futura mulher do jornalista da New Yorker, A.J. Liebling) já estava por um fio. Mais íntimos Elizabeth e Lowell ficariam na temporada que juntos passaram na colônia para escritores de Yaddo, em Saratoga Springs, entre 1948 e 1949. Logo depois se casaram e foram morar em Iowa, em cuja universidade Lowell fora convidado a dar aulas de poesia. O suplício começou já na lua-de-mel do casal. E prosseguiu pelo resto do caminho que, por razões várias, os dois trilharam: Europa, Nova York, Boston, Maine (nas férias de verão).
Maníaco depressivo, bipolar, alcoólatra, prevaricador – viver com o poeta era um atestado de insanidade e santidade. Stafford quase enlouqueceu, e morreu alcoólatra. Embora tenha suportado o poeta por muito mais tempo e com ele gerado uma filha, Harriet, nascida em 1957, Hardwick, bem ou mal, conseguiu sobreviver. Jason Epstein vivia dizendo que, se existisse um Nobel para casamento complicado, Lizzie não o perderia para ninguém.
Separados em 1970, depois que Lowell enrabichou-se por Lady Caroline Blackwood, durante uma temporada em Oxford, coube a Hardwick, e não a lady, aturar as recaídas e arrependimentos do poeta, que morreria de infarto dentro de um táxi, em setembro de 1977, a caminho do apartamento da ex-mulher, em mais uma inútil tentativa de reconciliação. Dos escombros desse inferno a dois restaram, além da filha, os confessionais sonetos de The Dolphin, publicados por Lowell em 1973, e as reminiscências de Noites Insones, um livro de juízos sobre as relações humanas, em especial sobre o casamento, povoado de fantasmas pessoais, cujas modulações e mudanças rápidas de tom e de foco tanto encantaram Susan Sontag. Foi em grande parte motivado por ele que Sontag escreveu o ensaio que dá título à coletânea Questão de Ênfase, traduzida pela Cia. das Letras.
Hardwick, que considerava a paixão pela leitura a maior dádiva que alguém podia receber (´ler é barato, consola, distrai, excita, amplia conhecimentos, compartilha experiências, é uma iluminação moral´), veio ao Brasil duas vezes, ambas discretamente. A primeira, em 1962; a segunda, em 1974, na companhia de Robert Silvers. Conheci-os por intermédio de Fernando Gasparian, que na época, como publisher do semanário Opinião, detinha os direitos de tradução para o Brasil dos textos da New York Review of Books.
Muito delicada e aparentemente frágil, Hardwick confirmou o que dela me dissera Paulo Francis: ´Lembra bastante a Vivien Leigh.` Se àquela altura eu já soubesse como fora sua vida com Lowell, teria especificado: a Vivien Leigh de Uma Rua Chamada Pecado. Lizzie era um avatar intelectualizado de Blanche DuBois. Sem precisar viver da caridade de estranhos ou mesmo de amigos. Bastavam-lhe os direitos autorais, as aulas e conferências, e as bolsas com que volta e meia a premiavam.
De nossa conversa guardei duas ou três impressões impermeáveis a discordâncias. Queixou-se de que a natureza deveria ter-se dado por satisfeita com a era miserável (´this miserable age´) a nós legada, que, a seu ver, não precisava ser também tão ridícula. Circunscreveu o ensaio a uma troca que só funciona plenamente quando dirigido a um público com o mesmo nível de conhecimento do ensaísta, ou quase isso – com o que concordo plenamente. Confessou que só conseguia escrever, fosse conto ou ensaio, depois de encontrar o tom correto da abertura, o que às vezes lhe consumia horas e horas de flaubertianas revisões. Revelou-se preocupadíssima com a linguagem da nova geração (brutal, teatral, militarizada) e com o desaparecimento da culpa na vida contemporânea e sua substituição pela paranóia entre os transgressores das leis da sociedade. Não sei se morreu menos desencantada com o mundo e os rumos da literatura.
Do Brasil que reencontrou em 1974, às vésperas da posse do general Ernesto Geisel, não levou, nem poderia levar, impressões otimistas. Num longo artigo para a New York Review of Books (27 de junho de 1974), elogiou nossa pujante paisagem, nossas belezas naturais, mas, já no título, Sad Brazil (Triste Brasil), punha em evidência a acerbidade de sua visão crítica. Sacou tudo: o mito do gigante adormecido e a maldição que isso representa; a complexa teia de vastidão, isolamento, diferenças sociais, torpor e lassitude que a todos confunde; a mística do crescimento a qualquer custo, que os ´ignominiosos militares transformaram em estandarte´; a visão pastoral de Gilberto Freyre desmentida pela realidade da ditadura; a prosperidade fluindo direto para os mais afortunados. ´Diante dos óculos escuros de Geisel tudo parece passar como diante de um cego` é uma das frases marcantes do artigo, com referências diretas a prisões, torturas, censura, pobreza e outras tristezas.
Hardwick cita e analisa os Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss, que considerava o segundo livro mais interessante sobre o Brasil (o primeiro era Os Sertões, de Euclides da Cunha), e arrasa com Brasília, ´a cidade mais triste do mundo e cujo principal atributo é ser completamente desnecessária, um testemunho do desejo brasileiro de viver sem memória´. No rodapé do artigo, a promessa de uma continuação, que nunca se confirmou na revista. Hardwick, porém, cumpriria a promessa, dez anos depois, ampliando seu texto para a coletânea Bartleby in Manhattan and Other Essays, que bem vale, nem que apenas por causa de ´Sad Brazil´, uma tradução brasileira.’
LITERATURA NO CINEMA
Filha de Philip K. Dick diz que quer controlar mais as adaptações do escritor
‘Aos 40 anos, Isa Dick Hackett põe fim às adaptações cinematográficas que nunca honraram o legado de seu pai, o visionário escritor Philip K. Dick. Dirigido por Lee Tamahori e baseado no conto The Golden Man, O Vidente (2007) foi o último título inspirado na obra do mestre de ficção científica, sobre o qual a herdeira não teve controle. ´Não venderei mais os direitos autorais de seus livros e contos, sem que a minha produtora esteja envolvida´, disse Isa, que fundou com a irmã Laura Leslie a Electric Shepherd Productions.
Quando o pai morreu, há 25 anos (quatro meses antes da estréia de Blade Runner – O Caçador de Andróides), Isa, Laura e o irmão Christopher tornaram-se responsáveis pelo seu espólio. ´Éramos muito jovens e não sabíamos o que fazer.` O primeiro projeto do qual a sua produtora participou foi O Homem Duplo (2006), adaptação do livro A Scanner Darkly, assinada por Richard Linklater. ´Alguns diretores têm sensibilidade para proteger a integridade da obra. Outros só a usam como desculpa para filmar cenas de ação e criar efeitos especiais.´
Além de O Homem Duplo, a única adaptação que a herdeira aprova é, obviamente, Blade Runner, de Ridley Scott, que virou cult. A Warner Home Video acaba de lançar uma edição especial em DVD, com a versão inédita do diretor – incluindo sequências restauradas digitalmente e a extensão da cena do sonho do unicórnio, entre outras mudanças sutis. ´Essa adaptação será sempre a minha favorita pelo impacto profundo que teve sobre o legado de meu pai. Ela tornou a sua obra conhecida do grande público.` Isa até batizou a Eletric Shepherd (Pastor Elétrico, na tradução) em referência ao título original do livro que inspirou Blade Runner, Do Androids Dream of Electric Sheep? No Brasil, o título do livro, agora relançado pela Rocco, é O Caçador de Andróides (256 págs., R$ 36).
As demais obras que refletem a mente insólita e futurista de Dick não são motivo de orgulho para a filha. Principalmente O Pagamento (2003), de John Woo, que buscou inspiração no conto Paycheck. ´Virou um festival de perseguições automobilísticas e tiroteios.` Nem Steven Spielberg conseguiu agradá-la, com Minority Report – A Nova Lei (2002), baseado em conto homônimo. ´Não gosto do final, otimista e luminoso demais, que não é coerente com a obra.` Isa vê ´algum mérito` em O Vingador do Futuro (1990), visão do diretor Paul Verhoeven sobre o conto We Can Remember It for You Wholesale, mas também não aprova a versão.
´Agora preciso ter certeza de que material cairá nas mãos certas´, afirmou Isa, atualmente à procura de um diretor para comandar o set da adaptação do livro Ubik. E ela não quer parar aí. ´Meu pai deixou 40 livros e mais 125 contos. O material é inesgotável.` A filha só lamenta que o escritor não tenha saboreado o reconhecimento em vida. ´Nunca vou esquecer a experiência horrível de ver Blade Runner no cinema, em 1982, aos 15 anos´, disse, lembrando que ninguém entendeu o filme e que as criticas foram péssimas. ´O cinema estava vazio e nem consegui ler o créditos finais, com a dedicatória para o meu pai, porque acenderam a luz. Fui para casa chorando.´’
TELEVISÃO
MTV aposta em caras novas em janeiro
‘A MTV vai dar dicas em sua programação para acelerar o aquecimento global. Calma, a rede politicamente correta não enlouqueceu. Tudo não passa de um brincadeira, em tom de alerta, é claro, inserida no meio da famosa programação de férias da emissora, o Verão MTV.
O pacote de novas atrações, que estréia no dia 8, traz além das dicas a estréia de novas VJs: a modelo Kika Martinez e a blogueira Marimoon.
Serão ao todo sete semanas de Verão, com gravações em praias do Rio, São Paulo, Bahia e Sul do País.
A novidade fica também por conta do Caveirão do Gordo. Produzida em HDTV, a atração mostrará João Gordo em entrevistas bizarras com personalidades – a maioria delas do funk – em praias cariocas.
Marcos Mion também leva o seu Convernation para a areia. Já Léo Madeira e Marina Person apresentam o Top Top Verão, mostrando os maiores acontecimentos do mundo da música.
O divertido karaokê do banhistas, o MIC MTV, também tem espaço garantido. Há ainda um mini VJ por Um Dia, o Minuto VJ, comandado nas praias por Felipe Solari e o reality show Os Quebradeiros.’
NIEMEYER
Não há arquitetura insubstituível
‘São 100 anos de vida e 70 anos de arquitetura. A prodigalidade de sua obra e o reconhecimento internacional dela seriam um cartão de visitas mais que suficiente: produziu cerca de 500 projetos em 4 continentes, e existem mais de 250 livros sobre sua obra em turco, libanês, português, alemão, holandês, inglês, japonês, francês. Em 1988, ganhou o prêmio máximo da arquitetura mundial, o Pritzker.
Mas Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares Filho tem sido um moto-contínuo, sempre buscando a surpresa, o arrebatamento. Suas idéias são tão firmes e inquebrantáveis quanto seu espírito, que completa um século intacto, resoluto, inquieto. Aos que o procuram, instalado em seu escritório em Copacabana, ele repete a mesma frase como um mantra: ´A arquitetura não é importante.´
Seu maior crítico é ele mesmo. Quando lhe perguntam se, caso pudesse voltar atrás no tempo, faria algo diferente do que fez, ele diz: ´Muitas coisas. É tolice dizer que as coisas são imutáveis. Tudo pode ser mudado. Só aquilo no qual acredito e certas convicções permanecem as mesmas.´
Já quando teve o primeiro projeto individual executado, a Obra do Berço, no Rio de Janeiro, em 1937, deixava claro que a revisão constante seria uma de suas grandes características. A obra inaugurou a utilização do sistema de brise-soleil móvel vertical no País. ´O sol entrava pelas salas e fui obrigado a usar o brise-soleil em nível vertical, o que modificou a fachada.´
O século de Niemeyer é o século do concreto armado, da arquitetura escultórica, arredondada, poética, sugerindo impossibilidade, delírio, mas sempre se confirmando. Lucio Costa costumava compará-lo ao gênio barroco do Aleijadinho. ´Antes mesmo de ser arquiteto, já pensava em talhar esculturas no concreto armado´, confidenciou Niemeyer. ´Sempre me senti atraído, desde jovem, pelas esculturas gregas e egípcias, a Vitória de Samotrácia; gosto das obras de Henri Moore e Heepworth, da pureza de Brancusi, das belas mulheres de Despiau e de Maillol, das figuras esguias de Giacometti.´
Em 1938 e 1939, de novo em parceria com Lucio Costa, projetou o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York. No início da década de 1940, o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, que considera sua obra-chave. ´Pampulha foi o início de nossa capital. A mesma correria, o mesmo entusiasmo.´
Entre 1945 e 1955, viveu um período de afirmação de seus princípios arquitetônicos, refletidos em obras como o projeto do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, em São José dos Campos (SP), da Fábrica Duchen (1950-1951), dos pavilhões do Ibirapuera (1951-1955). Em 1955, participou da reconstrução de Berlim, destruída durante a 2ª Guerra Mundial, projetando um prédio de apartamentos para o bairro de Hansa.
Em 1956, foi nomeado pelo presidente Juscelino Kubitschek diretor do Departamento de Arquitetura da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), empresa encarregada da construção de Brasília. Trabalhou com Lucio Costa, responsável pelo plano piloto da cidade, como numa simbiose.
´Sempre que viajava de carro para Brasília, minha distração era olhar para as nuvens do céu. Quantas coisas inesperadas elas sugerem! Às vezes são catedrais enormes e misteriosas, as catedrais de Exupéry com certeza; outras, guerreiros terríveis, carros romanos a cavalgarem pelos ares; outras ainda, monstros desconhecidos a correrem pelos ventos em louca disparada e, mais freqüentemente, lindas e vaporosas mulheres recostadas nas nuvens, a sorrirem para mim dos espaços infinitos.´
Após Brasília, Niemeyer fez vários trabalhos no exterior, no Líbano, Portugal, França, Itália, Inglaterra e Argélia. O golpe militar de 1964 suspendeu a publicação da revista Módulo, que fundara em 1955. Em 1967, exilou-se em Paris, onde projetou a sede do Partido Comunista Francês (1971). Na volta ao Brasil, foi escolhido para projetar o Sambódromo e os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), no Rio, durante a gestão Brizola (1983- 1987). Seus trabalhos recentes mais significativos foram o Memorial (1987) e o Parlamento da América Latina (1991), em São Paulo, e o MAC de Niterói (1991), no Rio.
O arquiteto Luiz Fernando de Almeida, presidente do Iphan, que coordenou na semana passada o tombamento de 24 obras de Niemeyer, defende que toda a criação do artista erigida no Brasil seja protegida. ´Embora aparentemente sofisticada, sua arquitetura é de fácil apreensão, como tudo o que é clássico e belo. Alguns ícones de sua produção, como o Congresso, as colunas do Alvorada ou a Catedral de Brasília, são de imediato, em qualquer lugar do mundo, identificadas com a modernidade, com o novo, com o Brasil.´
Niemeyer, avesso ao glamour e às elaborações demasiado teóricas, assiste impávido à própria entronização. Todos que tiveram a honra de ser seu interlocutor em anos recentes conhecem seu ritual. Em meio a frases sempre muito precisas, articuladas, o arquiteto pára, pede uma pausa e saca uma de suas cigarrilhas dinamarquesas Davidoff. A seguir, traga lentamente e constrói uma cortina de fumaça de formas esvoaçantes na frente do rosto, e seus olhos se iluminam.
Então, ele conta sempre as mesmas coisas. Que nasceu numa rua tão íngreme em Laranjeiras que até hoje se espanta ao lembrar que brincavam, ele e seus colegas, de futebol ali, descendo e subindo a ladeira. Era a antiga Rua Passos Manuel (hoje Ribeiro de Almeida, em homenagem ao avô do arquiteto).
´Nunca acreditei na vida eterna. Sempre vi a pessoa humana frágil e desprotegida nesse caminho inevitável para a morte. Religião, minha avó a abrir uma das cinco janelas da sala de visitas, o oratório, a missa rezada em casa, os livros de Teilhard de Chardin que li, curioso, nada disso resistiu a esse mundo injusto que me esperava´, contou. ´Às vezes, muito jovem, o espiritismo me atraía, logo dissolvido pelo materialismo dialético, irrecusável. Se via uma pessoa morta, meu pensamento era radical. Desaparecera, como disse Lacan, antes de morrer. Um corpo frio a se decompor, e nada mais.´
Não desviou um milímetro da sua primeira grande convicção política. Amigo de Luís Carlos Prestes, é até hoje membro do Partido Comunista Brasileiro, tendo aderido às idéias socialistas já no início de sua carreira. Quando talvez esperassem que se Niemeyer se tornasse um ancião dócil, contemplativo, ele voltou a surpreender: em novembro do ano passado, aos 98 anos, casou-se com sua secretária, Vera Lucia Cabreira, de 60 anos.
O arquiteto publicou livros de ensaios, como Minha experiência em Brasília (1961), editado em Moscou, Roma e Paris; Oscar Niemeyer (1986); Lições de arquitetura (1993); e a As curvas do Tempo (memórias, Rio, 1998). Mas evitou firmar dogmas. ´Compreendo a crítica de arte, muitas vezes justa e honesta, mas sou de opinião que o arquiteto deve conduzir seu trabalho de acordo com as próprias tendências e possibilidades, aceitando-a sem revolta ou submissão, sabendo-a não raro justa e construtiva, mas sempre sujeita a uma comprovação que somente o tempo pode estabelecer´, diz ele. ´Não acredito numa arquitetura ideal, insubstituível, somente em boa e má arquitetura. Gosto de Le Corbusier como gosto de Mies, de Picasso como de Matisse, de Machado como de Eça.´’
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