Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Holocausto ou o dever da lembrança

Realizou-se em Teerã um esdrúxulo exercício de estupro da história, em que o Estado iraniano decidiu ‘avaliar’ a existência ou não do Holocausto. Para isso convidou reconhecidos negacionistas e religiosos ortodoxos contrários à existência de Israel. Missão: negar o mais terrível crime coletivo do século XX.

É interessante, embora também trágico, que a expressão genocídio tenha surgido tão tardiamente na história. Somente em 1944, através da obra Axis Rule in Ocupped Europe, do jurista polonês de origem judaica Raphael Lemkin, elaborou-se um estatuto jurídico específico aos crimes de guerra em massa e aqueles praticados contra as minorias étnicas, religiosas ou culturais durante a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde as Nações Unidas (ONU), em 1948, inscreveu o genocídio nos seus estatutos enquanto o mais grave crime contra a humanidade.

Na sua definição exata, conforme, a ONU, genocídio se caracteriza como ‘a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. O genocídio se dá através de atos mortais contra membros de um grupo determinado, atingindo a integridade física ou mental dos mesmos, ou ainda, submetendo-os intencionalmente a condições de vida que impliquem na destruição, mesmo que parcial, do grupo. Da mesma forma, trata-se de genocídio quaisquer medidas visando esterilização, ou a impossibilidade de reprodução física e natural, do grupo, inclusive a transferência, adoção ou internação de bebes, crianças ou adolescentes, de forma a suprimir a capacidade própria de reprodução física e cultural do grupo específico’. O genocídio depois passou, a partir de decisão da ONU de 1968, a ser um crime imprescritível, tendo a ONU autoridade para criar tribunais específicos para a punição de tais crimes (como o Tribunal de Haia, para os crimes na ex-Iugoslávia, ou de Arusha, para Ruanda).

Contudo, a própria origem e a conceituação jurídica de genocídio prende-se a experiência do Holocausto judaico na Segunda Guerra Mundial e do seu impacto sobre a consciência mundial, independente da condição social, étnica ou religiosa. O Holocausto, porém, não foi nem o primeiro nem o único genocídio do século XX. Embora não existam dúvidas – honestas – sobre o caráter genocidário do Holocausto e da sua insuperabilidade enquanto crime sistemático, coletivo e intencional cometido contra os judeus, surgiram grandes debates na caracterização e extensão do conceito de genocídio. Assim, historicamente o primeiro genocídio no século XX seria o assassinato sistemático de armênios, em 1915, pelo exército turco, durante a Primeira Guerra Mundial. Da mesma forma, os ciganos, perseguidos pelo nazismo no Terceiro Reich seriam alvos do genocídio hitlerista. Depois da Segunda Guerra Mundial, deveríamos somar a esta lista o massacre dos cambojanos durante o regime do Khmer Vermelho, e a matança generalizada dos tutsis em Ruanda.

Sem qualquer dúvida, o Holocausto judaico, trauma insuperável da história, com suas características inumanas e monstruosamente grandiosas, permanece como paradigma, consciente ou inconscientemente, para os demais fenômenos ditos correlatos. Assim, pode-se falar de um genocídio dos armênios praticado pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial. Tratava-se na ocasião, em meados de 1915, de um grande medo por parte do regime nacionalista dos chamados Jovens Turcos – oficiais do exército otomano – de que os armênios servissem de ponta de lança da invasão dos aliados. Assim, quando ingleses e australianos desembarcam na região turca de Galípoli, iniciam-se as matanças de armênios. Primeiro são soldados alistados, depois a população masculina e, por fim, mulheres, crianças e velhos submetidos a longas marchas da morte, obrigados a se deslocar a pé por centenas e centenas de quilômetros através de regiões desérticas, sendo constantemente fustigados pelas populações turcas. Mais de um milhão de mortos e a deportação de outros milhares em direção a Rússia (limpeza étnica) marcam o genocídio armênio.

Genocídio ou genocídios

Com o avançar das pesquisas, concluiu-se que o primeiro genocídio do século foi cometido pelas tropas de ocupação alemãs contra a população nativa da Namíbia, então Sudoeste Africano Alemão. Desde 1885, os alemães procuravam estabelecer uma colônia no sul da África, ocupando então o território da Namíbia e expropriando os pastores negros Hereros. Em 1904 estes se revoltaram, iniciando uma longa guerra contra os invasores brancos, que só terminará em 1907, com a morte de 85% da população herera e a ‘pacificação’do território. Grandes empresas alemãs, entre as quais o Deutsche Bank, tinham interesses na região e lucraram com o extermínio herero. Estes ainda hoje lutam pelo reconhecimento do fato genocidário e exigem, em tribunais americanos, uma indenização.

No pós-Segunda Guerra Mundial, malgrado os antecedentes dos genocídios herero, armênio, judeu e cigano, outros processos de extermínio em massa foram colocados em prática, como no Camboja e em Ruanda.

O regime comunista de Pol Pot no Camboja assassinou mais de 1.700.000 pessoas, buscando implantar uma utopia pervertida de comuno-ruralismo, para o que acreditava ser necessário eliminar as populações urbanas do país. Já em Ruanda, a partir de 1990, as relações entre os dois grupos étnicos centrais do país começam a deteriorar-se, apontando para uma crise de grande brutalidade. Tutsis, uma minoria favorecida pelo colonialismo belga (que chega a formular uma falsa teoria antropológica para provar a superioridade dos tutsis), são afastados do poder pela maioria Hutu, que os consideram estrangeiros e aliados de inimigos do país (em especial de Uganda). Após derrubar o poder tutsi, e tendo como pretexto a morte do presidente Jouvenal Habyarimana em um acidente aéreo em 1994, inicia-se uma longa campanha de assassinatos coletivos, incentivados pela mídia, pela Igreja católica local e por várias instituições estatais. A ONU, chamada a intervir, perde-se em longas ‘demarches’ diplomáticas, o que permite que pelo menos 800 mil pessoas (tutsis e hutus moderados) sejam mortos, enquanto alguns milhares fogem em condições desumanas para a República do Congo/Kinshasa.

De extrema brutalidade, e causando grande espanto por desenrolar-se, desta feita, em plena Europa, foi o processo de limpeza étnica, uma forma de genocídio, surgida nos escombros da antiga Iugoslávia, a partir 1990. Numa explosão de ódio historicamente mal contido e de exacerbação do nacionalismo identitário, sérvios, croatas e mulçumanos lançaram-se num longo processo de assassinatos coletivos, destruição de vilas e cidades, estupros coletivos e extermínio sistemático de populações inteiras. Em 1991, os sérvios criaram campos de concentração e promoveram a limpeza étnica nas regiões limítrofes da Croácia, enquanto no ano seguinte, 1992, os croatas atacavam e expulsavam muçulmanos da Bósnia, e estes mesmos, atacavam bósnios muçulmanos. O resultado foi a morte de 300 mil pessoas, com o êxodo de mais de um milhão. A cidade de Srebrenica, onde os sérvios mataram de uma só vez sete mil pessoas, ficará como símbolo da barbárie possível no coração da Europa no final do século XX.

Assim, no contexto dos estudos contemporâneos sobre os genocídios, importa responder sobre o papel do Holocausto – enquanto paradigma genocidário – na história. Devemos destacar, desde logo, que nunca poderemos minimizar o fato de que o fascismo, em virtude da barbárie do Holocausto, ficou definitivamente marcado pelo anti-semitismo, pelo ódio ao judeu, bem como a outros grupos minoritários, todos vítimas da intolerância. As insistentes tentativas atuais – e me refiro em particular ao caso de Jörg Haider e seu Partido da Liberdade, na Áustria, a Gian Franco Fini, na Itália – de provar a possibilidade de um pós-fascismo, cuja nova característica, ou a mais marcante, seria o abandono de qualquer preconceito antijudaico, visam exatamente a dissociar fascismo (e neofascismo) e anti-semitismo.

Historicamente o anti-semitismo foi partilhado por todas as formas nacionais de fascismo: na Romênia, na Hungria, na Croácia, na Itália e na Alemanha, onde o ódio aos judeus tomou aspecto de política de Estado, objetivo nacional. Apesar disso, muitos pretendem hoje ver no ressurgimento do fascismo, limpo de um passado brutal, uma nova via política alternativa, crítica simultaneamente do capitalismo liberal selvagem e do socialismo. Para tal, insistem em dois pontos fundamentais: ora o fascismo não foi tão brutal quanto à história o descreve, história que seria em sua totalidade fruto da conspiração judaica, prova cabal do poder judeu em manipular os meios de comunicação (como insistem os negacionistas do Holocausto, erroneamente chamados de revisionistas); ora aceitam o passado, com toda a sua dureza, mas afirmam que os tempos mudaram e não mais aconteceriam tragédias como aquelas que se multiplicaram entre os anos de 1930 e 1940.

Na verdade, a imperiosidade para os neofascistas em banalizar, diminuir ou simplesmente negar o Holocausto inscreve-se numa estratégia ardilosa e muito bem estudada. Transformando a Segunda Guerra Mundial em apenas mais uma guerra, cruel e destruidora como todas as guerras, conseguir-se-ia transformar as relações entre os Aliados (Estados Unidos e URSS, com os demais países das chamadas Nações Unidas) e o Eixo (Berlim, Roma e Tóquio) em mais um conflito pela hegemonia mundial. Assim, o Julgamento de Nuremberg e a descoberta do ‘Shoah’ seriam parte da paz dos vencedores, imposta aos vencidos, assim transformados em vítimas.

Juntar-se-iam a esta versão depravada da história recente os acontecimentos posteriores do seguinte tipo: de um lado, a Rússia de Stálin, com o ‘Arquipélago Gulag’ (a imensa rede de campos de prisioneiros espalhada pela URSS) e o Estado Policial do KGB; de outro lado, surgiriam os Estados Unidos, com o racismo interno e as atrocidades cometidas no Vietnã, tal como My Lai e outros massacres, para demonstrar como todos os países são capazes, na guerra e no enfrentamento de seus inimigos, de atravessar as tênues linhas da ética. O que permanece como obstáculo a tal versão da história? Exatamente o Holocausto.

A singularidade do Holocausto

O Holocausto, como fenômeno arquitetado, planejado, organizado previamente visando ao assassinato em massa de um grupo pelo Estado, revela exatamente o caráter degenerado dos fascismos, especialmente da sua versão alemã, o nazismo. O Holocausto implica um selo, carimbo definitivo, no fascismo enquanto corrente política incapaz de apresentar-se, inclusive hoje, como alternativa possível de ordenamento civilizado do mundo. A barbárie pomposa do fascismo, com seus recursos ao espetáculo, desaba perante as cenas de deportação em massa, as marchas da morte ou a ordem industrial da morte nos campos de extermínio.

Assim, as propostas atuais de rever o fascismo – já em curso na Áustria e na Itália – como uma corrente política que evolui, libertando-se de avatares do passado, fracassa frente à uma série de atos que confirmam a equivalência entre fascismo e barbárie. Os recentes acontecimentos na Europa, nos Estados Unidos e mesmo na América Latina envolvendo grupos neofascistas em choque com estrangeiros, negros, minorias étnicas e lugares de memória do Holocausto obrigam o historiador, bem como o cidadão comum, a uma reflexão mais aprofundada sobre o fenômeno do ressurgimento do fascismo desde o final dos anos 80, e principalmente a debruçar-se sobre os fatores que, presentes nos anos 20 e 30 do século XX, ainda hoje alimentam a possibilidade de retorno da barbárie.

A propaganda de extrema-direita, os negacionistas e os grupos neofascistas – como a ‘Aryan Nation’ e tantos outros – insistem no aspecto forjado, inautêntico, das narrativas do Holocausto. Ora discutem pornograficamente sobre o número de pessoas contidas em instalações de aniquilamento, ora sobre o caráter do gás Zyklon-B como mero desinfetante. Frente a tais tentativas de assassinato da memória, torna-se fundamental multiplicar os relatos – como este que aqui apresentamos – e salvaguardar os lugares de memória do ‘Shoah’.

Alguns livros recentes, em especial o de Norman Finkelstein, acabam por ser entendidos de forma equivocada, provocando grande polêmica e alguns equívocos. No caso de Finkelstein, a crítica – duvidosa e polêmica – sobre a indústria do Holocausto acaba por contaminar a própria história do Holocausto. Na verdade, Finkelstein critica a pretensa multiplicação de sobreviventes e vítimas, interessados nas indenizações devidas por bancos e grandes multinacionais – e não a existência do próprio Holocausto. Mas, para muitos, o logro – que porventura possa existir – acaba contaminando toda a história.

Ao nosso ver, a ‘indústria do Holocausto’ não explica, de forma alguma, a multiplicação de esforços para salvaguardar lugares de memória, criar monumentos, erigir museus ou publicar livros e documentos sobre o Holocausto.

Algumas outras razões, menos venais, devem ser alinhadas para explicar o atual ‘boom’ – do qual este livro faz parte – de memória. Em primeiro lugar, e de forma clara, devemos lembrar que a geração que presenciou a guerra e os campos encontra-se – duramente – no seu outono. Assim, é justo que queiram deixar registrado, para além do relato oral, um documento, uma comprovação do horror vivido. Por outro lado, não podemos esquecer, foi depois de 1989-91, principalmente na Alemanha, Itália, Rússia e Áustria, que o fascismo ressurgiu como movimento de massas.

Aquilo que se pensava morto, decididamente parte da história vivida e passada, ressurgiu no tempo presente como ameaça. Assim, multiplicar e garantir a memória do ‘Shoah’ torna-se um dever político e ético de todos os que viveram o terror. Por fim, durante quase quatro décadas, para um grupo majoritário de judeus em todo o mundo, a preocupação central focou-se na sobrevivência do Estado de Israel.

O dever de lembrar

Devemos, ainda, ter claro em mente uma espécie de censura, cansaço e bloqueio que pesou sobre o tema Holocausto. Falar da guerra, do horror passado, surgia como verdadeiro bloqueio para a reconstrução da vida de milhares de pessoas. Era viver de novo o horror. E para quê? Se tudo estava definitivamente morto no passado… Foi preciso ver-se frente a frente com o retorno ao terror para fazer muitos buscarem coragem, e forças, para se dedicarem à tarefa de fazer o passado reviver sobre o papel.

E não foram só os judeus. Um caso excepcional é o dos Testemunhas de Jeová, caracterizados pelo recato e a tentativa de manter-se ao largo de grandes polêmicas, que passaram, depois de 1991, a promover grandes eventos sobre o Holocausto, do qual também foram vítimas. No caso dos Testemunhas de Jeová – Bibelforscher –, foi o impacto das perseguições na Rússia e demais países do leste europeu, após o fim do comunismo, que os levou a iniciativas de relembrar o passado.

Para muitos outros havia, para além da dor, a vergonha e a discriminação. Muitos dos homossexuais que conseguiram sobreviver aos campos decidiram-se pelo silêncio. Temiam o retorno ao lar e ao trabalho, com a pecha infamante do ‘triângulo rosa’. Na Alemanha Federal, o mesmo Parágrafo 175 da legislação que justificou a internação e o assassínio de gays manteve-se em vigor até 1968, e na Alemanha Oriental até 1969. Por isso, todo homossexual libertado dos campos foi imediatamente considerado criminoso, sem direito à indenização ou à qualquer outro benefício. Para eles, só restavam o silêncio e a vergonha.

Devemos, ainda, destacar que somente agora – após 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial – muitos documentos foram liberados ao público, como os papéis da CIA sobre a colaboração de nazistas com os sistemas de informação ocidentais, ou ainda a postura do Vaticano sobre o Holocausto. O fim do socialismo de Estado no leste europeu acelerou a abertura de muitos outros arquivos, em especial na ex-URSS e na ex-DDR (Alemanha Oriental), permitindo o acesso a um vastíssimo repositório de documentos referentes ao tema. Por fim, a queda das ditaduras latino-americanas permitiu a triagem dos vastos arquivos das polícias políticas locais, identificando-se o volume e extensão da colaboração entre o Terceiro Reich e os regimes autoritários na América.

Assim, explicar-se-ia a retomada atual dos estudos sobre o Holocausto.

Alguns historiadores, como Zeev Sternhell, destacam a desconfiança perante o outro, o diferente, e a possibilidade da violência como resposta a qualquer desafio, inclusive ao desconhecido ou simplesmente novo, como característica básica do fascismo. Assim, estabelecido o que é nacional (e, portanto, equivalente a um ‘Eu’ reconhecido), tudo o mais é lançado ao pólo extremo do antinacional: por definição, o não-ariano, o comunista, o cigano, o negro, o estrangeiro, o gay e aqueles que afrontam a perfeição nacional/racial – os considerados mental ou fisicamente doentes.

As vítimas esquecidas

Nesse contexto, duas categorias de antinacionais se destacam: o judeu e o cigano. Ambos inserem-se no mesmo caso: são universais, cosmopolitas, falam línguas distintas, impedem a homogeneidade e a coesão nacional. Os comunistas e anarquistas, como no caso clássico, da Itália, não são diferentes: o partido, a luta de classes, a ênfase na transcendência prática (a libertação econômica) dividem a nação, impedem a coesão nacional e, logo, enfraquecem o Estado.

A alteridade social e individual surge, assim, como elemento central de ação do fascismo. As próprias bases da diferença – a diversidade étnica, partidária, a multiplicidade das classes sociais, a possibilidade do amor e do prazer diferente – devem desaparecer face às instituições homogeinizadoras, únicas: nação, raça, corporação. No fascismo não há espaço para o outro, mesmo o outro hierarquizado e subordinado, tampouco para sua ‘educação’ e ‘conversão num homem novo’, como comprova o extermínio de judeus e gays. Uma idéia-força, raça ou nação, torna-se o único valor moral em torno do qual ergue-se um poderoso código de ação. Assim, armado com um sistema ideológico e mental adequado, o fascismo identifica em si mesmo valores absolutos, e qualquer diferença tornar-se-ia objeto de eliminação violenta.

Os estudos referentes à alteridade e ao fascismo mal começam a ser realizados, em grande parte obscurecidos, enquanto objeto, por uma ênfase desmesurada no Holocausto, como fenômeno da história judaica. Queremos, em verdade, encarar o Holocausto como episódio da história de toda a humanidade.

Cabe uma explicação: nossa referência se volta, aqui, não para a monstruosidade indiscutível do Holocausto enquanto produção industrial do assassínio e, sim, para as inúmeras tentativas de buscar na condição judaica, nas suas especificidades, as razões (o que em si já é uma ofensa) de tamanho crime. Ao mudarmos a ênfase de Holocausto–judeus para Holocausto–alteridade, acreditamos estar operando uma correção de rumo fundamental: descolar a condição judaica da lógica do assassínio em massa dos próprios judeus e das outras vítimas do fascismo.

Partimos aqui de uma observação a nosso ver por longo tempo esquecida: o mal do racismo deve ser buscado nos algozes e não nas vítimas. Ser judeu, cigano ou gay não encerra em si um mal atávico ou histórico; tampouco uma condição, ou especificidade histórica, a ser superada; a inconformidade homicida com a condição do outro é, isto sim, um mal a ser superado.

Coube a Theodor Adorno chamar a atenção para o fato de que ‘(…) as raízes do genocídio judaico devem ser procuradas nos perseguidores, não nas vítimas que, sob os mais mesquinhos pretextos, foram entregues aos assassinos’. Assim, ainda uma vez, é a anatomia do fascista que explica seus crimes, e não a das vítimas. Claro, a escolha de uns como alvo do ódio, e não de outros, deve ser levada sempre em consideração, porém como um elemento de eficácia no convencimento para o crime, e não como explicação do crime.

Franz Neumann insiste no mesmo ponto, principalmente por meio da pergunta ‘Mas como achar um inimigo?’. Tal inimigo deveria preencher alguns requisitos de veracidade, para que o convencimento pudesse, de fato, funcionar em termos de recepção de idéias. Assim, ainda conforme Neumann, o judeu preenchia alguns desses requisitos para uma parcela importante da população: eram estrangeiros, identificavam-se com o capitalismo e, ao mesmo tempo, com o comunismo (Marx, Trotsky, Zinoveiv, entre outros, eram judeus); eram largamente a avant garde literária, musical, artística em geral; e possuíam uma religião específica e um anátema multissecular brandido pelo cristianismo.

Assim, a escolha de um inimigo partia de um campo de referências já reconhecido. Mas tais características, anteriores ao fascismo, não haviam voltado os judeus, na Alemanha, por exemplo, ao desprezo e muito menos à morte em períodos anteriores. No Império (1871-1918), judeus desempenharam um papel de relevo junto a todos os segmentos sociais do país, inclusive junto ao próprio Imperador. Durante a República de Weimar (1919-1933), a situação não só foi a mesma, como ainda se assistiu à chegada de judeus aos postos mais elevados do país, como por exemplo o jurista Hugo Preuss ou o economista e diplomata Walther Rathenau.

Em suma, contra uma visão arraigada – e que temo ser um subproduto da própria propaganda fascista -, o anti-semitismo alemão não era, desde sempre, excludente ou mesmo homicida. Comparativamente, o anti-semitismo polonês, o russo e o báltico foram, antes do fascismo, muito mais agressivos do que o anti-semitismo alemão. Colocamo-nos, assim, em crítica aberta àqueles que querem filiar o Holocausto exclusivamente à história alemã. Não podemos esquecer que boa parte, para usar um termo em voga, dos carrascos voluntários de Hitler, eram lituanos, polacos, croatas, húngaros ou ucranianos. O Holocausto, bem como outros genocídios, deve ser filiado a uma concepção de mundo que nega qualquer possibilidade de um contratipo ao seu tipo-padrão, e não à história específica de um povo. Para Adorno, o Holocausto está inextrincável e dialeticamente ligado ao ódio e à desconfiança contra todos que são (imaginariamente) considerados fracos, débeis, felizes e fortes.

É neste sentido que as observações de Adorno e Neumann nos ajudam a pensar o Holocausto judaico e todos aqueles que foram assassinados apenas por serem diferentes de um tipo imaginário alardeado como padrão.

Nascidos no racismo

Se pensarmos os tipos fechados que foram alvos do fascismo – judeus, ciganos, gays, só a título de exemplo -, podemos perceber que são grupos constituídos por uma cultura marcada por laços de solidariedade (o Barão de Charlus diria, proustianamente, de cumplicidade), de auto-identidade e ajuda. A família judaica, a nação cigana e o grupo de amigos gays são, em suma, exemplos famosos de possibilidades arrebatadas de enfrentar desafios em nome do amor.

Ora, a característica básica dos seus algozes foi (e ainda o é) a frieza, o distanciamento do outro enquanto pessoa em favor da identificação com um coletivo anônimo. Auschwitz só foi possível (tal como o ‘Arquipélago Gulag’, o massacre dos armênios, o genocídio dos trabalhadores asiáticos na Ferrovia Thai-Burma ou dos índios no Brasil e no México contemporâneos) pela frieza do indivíduo face ao outro. Esta frieza frente ao outro é apenas o mesmo nome da incapacidade para amar, para reconhecer em qualquer um a possibilidade do amor; fora um pequeno círculo, constituído em padrão merecedor do amor, todos os demais são tratados como estranhos; mas, mesmo aí, a frieza domina.

Tal estranheza é a condição psicológica básica, sine qua non, para o genocídio; sem ela, Auschwitz não seria possível. Um agravante ainda: como os algozes se sentem estranhos perante o outro, são estranhos para si mesmos e sofrem sua própria estranheza, impossibilitando-os para o amor, mesmo que o amor entre iguais. Se, ao menos, amassem a si mesmos, quer dizer entre eles mesmos, estariam preparados para reconhecer no outro a capacidade de dar e receber amor. Mas, não: eles mesmos, sedentos de amor, foram incapazes de receber amor e, assim, não conseguiram (e, como tantos outros, não conseguirão jamais) amar.

Por tal razão, o pessimismo humanista de Adorno clama por uma revolução na educação, na necessidade imperiosa de impedir, pela educação, novos Auschwitz. Para salvar as crianças da frieza, geradora do estranhamento, talvez fosse necessário salvá-las dos próprios pais. Um exemplo clássico de educação autoritária, trabalhado por S. Freud, dá-se na descrição do Caso Schreber, da sua paranóia sexo-salvadora, do seu medo fóbico à tortura; a neurose do juiz e político conservador e respeitável explicar-se-ia pela educação avassaladora do respeitável Dr. Schreber (pai), com suas inacreditáveis máquinas de corrigir a postura, de dormir corretamente e suas estafantes sessões de ginástica eugênica impostas aos filhos.

Criava-se, cria-se, por tal educação autoritária (e aqui autoritário deve ser entendido não só como violento/repressivo, mas também como agressivo/distanciado), ‘um tipo com consciente coisificado’ (Adorno), uma ‘anulação do ego’ (Neumann). Como sofrem, e sofrem a frieza e a falta do amor – em suma, sua condição estranhada -, tendem a negar a possibilidade de existência do próprio afeto, da fraqueza ou do medo; dialeticamente, temem ainda mais o que os põem em risco ao afirmar a possibilidade de ser forte e feliz: ‘Trata-se de um consciente que rejeita tudo o que é conseqüência, todo o conhecimento do próprio condicionamento [de sua própria dor] e aceita incondicionalmente o que está dado’.

A educação fascista foi por excelência geradora de tal estranhamento.

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Professor titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)