Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mário Magalhães

‘NA SEMANA em que o Papai Noel se desdobra para atender encomendas e não frustrar sonhos, evoco o herói de carne e osso revelado no mês passado: Riquelme, 5, salvou a vizinha de um ano e dez meses de um incêndio em Santa Catarina.


Vestido com a fantasia de Homem-Aranha, o garoto brincava quando se deparou com a fumaça na casa de madeira ao lado e o horror da mãe que, de tão espichadas as labaredas, já desenganara a filha.


O Menino-Aranha disse à mulher que não se desesperasse. De gatinhas, venceu as chamas e puxou do berço, sem um ferimento, a criança menor que ele. Indagado pelos bombeiros sobre medo, o moleque com nome de craque argentino reagiu com a altivez dos valentes: claro que não tremeu, o Homem-Aranha nada teme.


Abandonado pela mãe, criado por avós e com o pai distante, Riquelme mostrou que super-heróis existem. E que, enquanto houver gente como ele, não faltarão boas histórias para o jornalismo contar.


Pois a Folha contou muito mal a façanha. Apurou as informações por telefone, não conversou com Riquelme e seus parentes, nem se aproximou de Palmeira, a cidade onde vive o menino.


Para noticiar o feito, editou um texto criativo como o resumo de um dia comum da Bolsa de Valores. Desgraçadamente, asfixiar histórias fascinantes tem sido mais comum no jornal que imprimi-las.


Neste ano, um juiz expulsou de uma sala de audiências no Paraná um trabalhador rural por calçar chinelos. O homem pobre não tinha sapatos. A Folha produziu reportagem sobre a covardia, mas não a publicou. Cobrada por um leitor, a Redação alegou ‘problema de espaço’.


Espaço é menos questão de tamanho que de sensibilidade. A falta desta fez com que os depoimentos de vítimas do acidente de 1987 com o césio fossem relatados com o encanto de um parecer filatélico.


E com que o jornal não se dispusesse a viajar para ouvir os alunos de uma escola pública do interior que se associaram à professora em uma vaquinha para assinar a Folha -só se leu a palavra da mestra, ouvida da capital.


Boas histórias jornalísticas não são compulsoriamente edificantes ou guardam final feliz. Ao falar de um ou uns poucos, seduzem mais que a prosa fria impessoal.


A Folha deveria se inspirar no Natal, no espírito das suas narrativas cativantes, para buscar grandes histórias e contá-las com sabor.


A todos, um feliz Natal.’


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‘Folha, Serra, tendência e método’, copyright Folha de S. Paulo, 23/12/07.


‘(Reproduzo nota que escrevi na crítica da terça-feira.)


Na semana passada, lamentei que a Folha não tivesse procurado o governador José Serra para ele se pronunciar sobre a reintegração de posse na favela Real Parque. O terreno pertence a uma empresa ligada ao Estado; a Polícia Militar, que executou a ordem judicial, é subordinada ao governador e a autoridades que ele nomeia diretamente ou não.


Ontem, lamentei que o jornal não tivesse procurado Serra para ele se pronunciar sobre a morte de um lutador (…) em dependências do Estado.


Hoje, lamento que o jornal não tenha procurado Serra para ele se pronunciar sobre a morte por tortura -de acordo com laudo do IML- de um adolescente (…) preso por policiais militares.


Três exemplos não asseguram que se esteja diante de um método. Indicam, no entanto, uma tendência.


O jornal, cujo dever é fiscalizar o poder, todos os poderes, deveria refletir sobre isso.’


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‘O mundo visto por lentes sombrias’, copyright Folha de S. Paulo, 23/12/07.


‘Houve um repórter que respondia sempre do mesmo modo quando a emissora em que trabalhava o acionava para dar as novas da seleção.


Ao ‘Tudo bem?’, devolvia a exclamação: ‘Tudo bem!’. Mesmo que o time estivesse em uma crise danada. Tornou-se conhecido como ‘Repórter Tudo Bem’.


Esse tipo de jornalismo oba-oba, que se confunde com o animador de auditório ou o bobo da corte, distorce tanto a realidade como o da escola ‘cri-cri’, habituado a ver o mundo com lentes sombrias, mesmo com o sol a pino.


Volta e meia, a Folha se perde nessa sombra.


No domingo, o que era suposição razoável em artigo opinativo apareceu como obsessão na peça noticiosa sobre a decisão do Mundial.


Título: ‘Jogo do tetra ameaça ser tétrico’. ‘Linha-fina’, abaixo: ‘Com Milan de um atacante só e Boca forrado de volantes, final no Japão tem tudo para ser amarrada’.


À arrogância da adivinhação, somou-se a leviandade da insistência, na abertura: ‘A final do Mundial de Clubes em Yokohama […] não deverá ser um jogo atraente’.


Foi um jogaço, goleada de 4 a 2 para o Milan.


Pode ser pior, com a partida já vista, como quando o Barcelona derrotou por 2 a 0 o Glasgow Rangers em novembro. Esporte titulou ‘Ofuscado, Ronaldinho dá vez a jovem recordista’. O texto seguiu na mesma batida.


Já o diário ‘El País’, de Madri, estampou: ‘Ronaldinho lidera o triunfo azul e grená’. ‘El Periódico’, o melhor jornal catalão, encheu a bola do craque. A publicação especializada ‘Sport’ destacou a ‘recuperação do brasileiro’.


Não é só no futebol. Nos Jogos do Rio, em vez de aguardar o fim da competição de ginástica, a Folha antecipou: ‘De potência, Brasil vira aprendiz no Pan’. Logo jorraram medalhas inéditas para a modalidade.


O jornalismo crítico tem compromisso com os fatos. Se os fatos não são trágicos, não há como relatar tragédias.’