Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta Capital


MEMÓRIA / JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Deonisio da Silva


Severino não é mais aquele


‘‘Calma ao copiar estes versos/ antigos: a mão já não treme,/ nem se
inquieta: não é mais a asa/ no vôo interrogante do poema’. ( João Cabral de Melo
Neto, O Autógrafo).


Escrito entre 1954 e 1955, a pedido de Maria Clara Machado, o poema Morte e
Vida Severina: auto de natal pernambucano, foi lançado em 1956. Em 2006,
portanto, o poema completou 50 anos desde que pulou no mundo e ninguém acendeu
as velas desse aniversário.


O pernambucano retomava em versos os temas e problemas da denúncia social,
transfigurando na poesia a situação desesperadora da realidade nordestina,
marcada pelo binômio devastador do latifúndio e da seca, magistralmente tratados
na prosa em dois romances emblemáticos, ainda nos anos 30: São Bernardo (1934) e
Vidas Secas (1938), do alagoano Graciliano Ramos.


Os anos trinta eram tempos agitados: em São Paulo, Patrícia Galvão, a Pagu,
lançava, em 1933, sob o pseudônimo de Mara Lobo, Parque Industrial, face urbana,
industrial e paulista da temática rural, agrária e nordestina do Romance de 30.


A referência de nossas letras já se deslocara do Rio e de São Paulo para
outros arquipélagos literários, como o Nordeste e o Brasil meridional,
especialmente o Rio Grande do Sul, onde tinham surgido autores como Erico
Verissimo, Dyonélio Machado, Mário Quintana e Ivan Pedro Martins, este último
objeto da fúria censória com o romance Fronteira Agreste, proibido ‘em todo o
território nacional’. Distribuir livros por todo ‘o território nacional’,
oferecendo-os ao distinto público, seria bem mais difícil…


Freqüentemente a inteligência das metrópoles do Rio e de São Paulo é instada
a ver o que se passa para além de seus limites e fronteiras de influências, mas
quando o faz não esconde o ar de soslaio e surpresa, realizando tardiamente os
reconhecimentos.


Exemplos de descaso não faltam. O gaúcho Joaquim de Campos Leão, o Qorpo
Santo, precursor do teatro do absurdo, na voz autorizada de Guilhermino César,
viveu no século XIX, mas somente veio a ser descoberto na segunda metade do
século XX. Adelino Magalhães fez o monólogo interior antes de James Joyce, mas,
obscuro professor do secundário em Niterói, é esquecido até hoje.


Devagar, porém, infelizmente muito devagar, Rio e São Paulo vão aprendendo
que o Brasil está em muitos outros lugares. Cruz e Sousa, Alphonsus de
Guimaraens, Emiliano Perneta, Pedro Kilkerry e Eduardo Guimarães, nossos maiores
poetas simbolistas, vieram respectivamente de Santa Catarina, Minas Gerais,
Paraná, Bahia e Rio Grande do Sul.


A obra de João Cabral de Melo Neto teria obtido o reconhecimento que
granjeou, se o autor tivesse ficado no Recife? Convém trabalhar sobre essa
hipótese, pois no ano do lançamento de Morte e Vida Severina, a revelação de
romance vem de Minas Gerais, com Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
Se os dois autores não dispusessem, como diplomatas, da convivência entre
reconhecidos intelectuais do Brasil e do exterior, provavelmente haveria muitas
outras pedras no caminho. Benito Barreto, mineiro como Rosa, lançou os quatro
romances de Os Guaianãs nas décadas de 1960 e 1970, mas até hoje continua
esquecido. Quando, no ano passado, a Veja lembrou a literatura dos anos 70,
pensou-se que ia enfim celebrar o boom literário daqueles anos, mas o fez apenas
para falar mal do ministro Tarso Genro, desqualificando um livro de poesias que
ele tinha lançado em 1977!


O poema de João Cabral ganha o público apenas a partir de 1966, depois de
levado aos palcos, nacionais e internacionais, pelo Teatro da Universidade
Católica, num périplo que começa por várias cidades brasileiras. Depois do
prêmio que arrebatou no Festival de Nancy e da apresentação no Théatre des
Nations, em Paris, segue para Lisboa, Coimbra e Porto. Tinha destaque na
encenação a música de Chico Buarque de Hollanda. Em 1969, a Companhia Paulo
Autran volta a encenar o poema em várias cidades brasileiras. Em 1976, Morte e
Vida Severina chega ao cinema pelas mãos de Zelito Viana.


Resumindo, tornou-se quase unanimidade, depois que o público, até então
reduzido, foi ampliado pelo teatro, pela música e pelo cinema. Unidas à poesia,
as três artes deram a Morte e Vida Severina uma dimensão que provavelmente o
livro jamais teria, pois o brasileiro médio, por motivos óbvios, mais ouve e vê,
do que lê.


João Cabral de Melo Neto não gostava de seu poema, referindo-se a ele, não
por falsa modéstia, como uma obra menor, opinião que reiterou quando sugeriu ao
cineasta Zelito Viana que esquecesse Morte e Vida Severina, principalmente sua
música – ‘impede a lucidez’ – e desse mais atenção aos versos de outro poema,
intitulado O Rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à
cidade de Recife.


O caminho do rio é o mesmo do retirante Severino: ‘Para os bichos e rios,/
nascer já é caminhar,/ eu não sei o que os rios/ têm do homem do mar;/ sei que
se sente o mesmo/ e exigente caminhar’.


Os homens entretanto precisam de mais coisas do que os bichos, e o poeta
registra a pobreza das vilas às margens do Capibaribe: ‘Constam de poucas casas/
e de uma pequena igreja,/ como no Itinerário,/ já as descrevia Frei Caneca./
Nenhuma tem escola;/ muito poucas possuem feira’.


Frei Caneca será depois tema solar de Auto do Frade, em que o poder, podendo
ser a alavanca para transformar a realidade e corrigir as injustiças sociais, é
concebido como produtor das situações adversas narradas em Morte e Vida
Severina, reconhecendo que ‘o mundo não é uma folha/ de papel, receptiva’, ‘mas
o sol me deu uma idéia/ de um mundo claro algum dia’.


A caminho do Recife, o retirante diz a certa altura: ‘Pensei que seguindo o
rio/ Eu jamais me perderia:/ Ele é o caminho mais certo,/ De todos o melhor
guia’. E quando, no caminho, visita um recém-nascido, ouve versos que falam de
outras perdas. Numa seqüência desconcertante, as visitas trazem caranguejos
‘pescados por esses mangues;/ mamando leite de lama/ conservará nosso sangue’.
Outra, sem nada, diz que pode oferecer ‘somente o leite que tenho/ para meu
filho amamentar’, que assim mesmo propõe-se a dividir, pois ‘aqui são todos
irmãos,/ de leite, de lama, de ar’. Outra oferece papel de jornal ‘para lhe
servir de cobertor;/ cobrindo-se assim de letras/ vai um dia ser doutor’.


Servindo no Consulado Geral, em Barcelona, lê na revista El Observador
Económico que a expectativa de vida no Recife era ainda menor do que na Índia.
Escreve então, entre 1949 e 1950, O Cão sem Plumas, um de seus mais belos
poemas, em que o rio Capibaribe continua presente: ‘Aquele rio/ jamais se abre
aos peixes,/ ao brilho,/ à inquietação de faca/ que há nos peixes’.


Mudança essencial, entretanto, está se processando. O Estado aumentou sua
presença entre os pobres, como demonstra a avalanche de votos na reeleição do
presidente Lula nas regiões insuficientemente assistidas antes que ele chegasse
ao poder, em 2002. É ainda mais assistência do que necessária inclusão no
mercado de trabalho e na sociedade, mas não é por não ter sido dado ainda o
segundo passo que se tem o direito de lamentar o primeiro.


Outras mudanças vêm ocorrendo. Hoje, as oligarquias dos Estados onde
brilharam os autores citados já não têm a força de impor o voto de cabresto ou
de manter os mecanismos que levaram Frei Caneca a ser condenado à morte ou
legiões de severinos a serem esquecidos, na literatura ou na vida, ainda que
continue em vigor o dito do retirante: ‘é difícil defender,/ só com palavras à
vida’.


João Cabral de Melo Neto, nascido no Recife, em 1920, deixou de defender só
com palavras a vida, em 1999, aos 79 anos. (xx)


PS. Com pequenos cortes, este artigo foi publicado na revista CartaCapital
(Ano XIII, n* 436, 21 de março de 2007)’




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