Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A agenda discursiva da corrida presidencial

As pesquisas de opinião se transformaram num importante termômetro da vida política nas sociedades modernas. Por elas, busca-se compreender as repercussões do desempenho e dos problemas de governantes e parlamentares. Mais do que os analistas dos institutos de pesquisa, no entanto, é a imprensa que se propõe a ser a autoridade interpretante dos números, das estatísticas divulgadas a cada mês.

Designo aqui por autoridade interpretante o lugar social pelo qual alguns agentes lutam para ocupar, porque é o lugar de quem tem a última palavra sobre os eventos políticos, econômicos, sociais e históricos. O cientista, de um modo geral, tem sido hoje aquele que é chamada a ‘depor’ sobre os fenômenos naturais e culturais. Mas no século XX aparecem os profissionais de mídia – jornalistas, publicitários e artistas – disputando o mesmo lugar. O jornalista tem uma função capital nesta realidade. É que o jornalismo ‘informa’ sobre todos os aspectos da vida cotidiana e, ‘informando’, ele midiatiza os fatos e fenômenos sociais.

Um exemplo disso é a relação entre cientistas políticos e jornalistas na disputa pela última palavra sobre as pesquisas de opinião. Usando o arsenal de mídia, o jornalista se impõe e a palavra especializada do cientista pouco aparece, ou aparece em último caso na função de legitimação de manchetes de jornais. A imprensa não busca necessariamente a palavra do expert para ‘saber sobre’; muitas vezes o expert só vem confirmar a direção editorial dada àquela matéria. Por isso a escolha cuidadosa daquele especialista que venha a confirmar algumas interpretações já dadas no título. O expert se transforma em personagem da matéria; passa a ter um papel a desempenhar no enredo geral já definido.

Ultimamente, um fato tem intrigado a mídia. A permanência do nome do presidente Lula no topo das pesquisas, apesar da interpretação mil vezes reforçada de que o governo teria acabado antes do fim; ou de que, numa das sentenças mais reiteradas, a oposição sangraria Lula aos poucos, para que ele chegue fraquinho às eleições.

Mas por que, pelo menos até agora, isso não ocorreu? Voltam então jornalistas e editores a tentar ocupar o lugar de autoridade interpretante deste fato surpreendente. Numa expressão da teoria do discurso, diríamos que o real da história mostrou-se. Mas como foge à lógica anteriormente prevista, as avaliações passam a ser desencontradas: ‘Lula estaria bem somente devido às classes mais pobres’; ‘Lula estaria bem por causa do aumento da campanha de marketing oficial’; ‘Lula estaria bem porque é o único a fazer campanha, ainda que oficiosamente’ etc.

Pauta de discussões

Só que a sustentação de Lula também se dá nas classes médias, a campanha oficial é compartilhada com a forte campanha dos oponentes em seus estados, e os dois principais adversários Anthony Garotinho (pré-candidato pelo PMDB) e Geraldo Alckmin (pelo PSDB) também estão nas ruas há tempos.

Proponho então dois instrumentos conceituais que ajudariam a compreender um pouco melhor esse enigma: um advindo das teorias do jornalismo e comunicação; o outro da análise de discurso.

A hipótese do agenda setting nasceu nos meios acadêmicos americanos há mais ou menos 30 anos. Por ela, compreendemos que a mídia não tem a capacidade de ‘manipular’ (termo bastante difundido no senso comum) o público, mas sim a de estabelecer a pauta de discussões num certo momento em determinada sociedade. Desde maio do ano passado, a pauta é justamente a ‘corrupção’, ou mais especificamente a ‘corrupção do PT e no governo’, elevada ao status de ‘maior escândalo político da história’. Quase nada mais foi discutido nesse período: política de emprego, os caminhos da educação, questões internacionais em que o Brasil se viu envolvido. Sim, tudo isso foi noticiado, mas não mobilizou a opinião pública.

Não basta ‘querer’

Só que há um problema geralmente não levado em consideração pela imprensa: a agenda estabelecida tem prazo de validade. É que, ao entrar em pauta, um determinado assunto se midiatiza e começa a circular dentro das leis de mercado. Portanto, ele – como uma música, por exemplo – se esgota como novidade. E arrasta, neste esgotamento, qualquer coisa a ele relacionada – nesse caso: corrupção, escândalo político etc.

O caso do caseiro Francenildo é um dos mais típicos. No início do ano, com a ascensão de Lula nas pesquisas, a oposição procurou como louca um novo fato político. Conseguiu, com a ajuda do próprio governo. Antes, a preocupação eram as denúncias, diria, ‘morais’ contra o então ministro da Fazenda, Antônio Palloci. Depois, com a própria ajuda deste, o tema se configurou como uma denúncia ‘legal’ contra ele. O ministro caiu, mas ainda assim o caso pouco atingiu o presidente Lula. E mesmo que o ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, se veja envolvido, também nada atingirá pelo viés do ‘escândalo político’ o presidente: a pauta, quase ninguém percebe, está esgotada.

Sem dar receitas, interessante para a oposição seria procurar outras questões. A mídia – aquela mais afinada com a oposição – estaria aberta a essas sugestões. Ao mesmo tempo, no entanto, isso não se estabelecerá por um simples ‘querer’ destes agentes. Os meios de comunicação não fazem o que querem com a opinião pública.

Caminho interessante

Se eles conseguem por vezes estabelecer a agenda deve-se, no entanto, compreender que é por movimentos bem mais complexos, cuja compreensão foge até mesmo da teoria da agenda setting como ela é formulada. É aí que entra o auxílio da análise de discurso, uma teoria da linguagem já bastante solidificada na academia brasileira. De acordo com essa análise, os indivíduos ocupam posições-sujeito, lugares de interpretação sobre si e sobre o mundo em certos ‘vetores de pensamento’, que são as formações discursivas. Como toda atividade humana é atividade pensada, simbolizada, as formas discursivas são lugares de auto-reconhecimento do sujeito, com conseqüências não somente no pensar e no dizer, mas também no fazer, no agir.

Sua ocupação não é um ato voluntário, mas algo que se impõe por uma complexa rede de relações que envolve também formações ideológicas (relações de poder) e formações imaginárias (resultado das projeções sobre o outro e de identificações geralmente inconscientes). Fruto de identificações simbólicas e imaginárias, as posições em certas formações discursivas se tornam a perspectiva através da qual eu entendo, vejo, ou falo os fatos do mundo. São produtos dos movimentos da história, que não são impessoais, mas suprapessoais – lembrar Marx: ‘Os homens fazem a história, mas não da forma como o querem’.

Ou seja, as autoridades interpretantes primeiro deveriam compreender como a população, como sujeito, se posiciona para compreender o que está acontecendo. Escutar quem não tem voz pública seja talvez um caminho interessante para isso.

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Especialista em Lingüística e Análise de Discurso